Por ano, no mínimo 5 mil mulheres morrem por crimes em nome da honra no mundo. Mais de mil delas, só no Paquistão. É o que mostram os dados da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Human Rights Comission of Pakistan (HRCP), que, em estudos de 2010 e 2016, respectivamente, mensuraram a quantidade de mulheres que são alvejadas, esfaqueadas, enforcadas e envenenadas por membros de sua família com o objetivo de proteger a tradição.
Em 2007, Shadia Sheik, jovem belga de origem paquistanesa, foi morta pelo irmão após fugir de casa por se recusar a casar com alguém que não era de sua escolha. No cinema Shadia, pelas mãos do jornalista e cineasta Stephan Streker, inspirou Zahira, protagonista de “A Garota Ocidental”, um competente estudo de personagem, que através de um mergulho no cotidiano, coloca sob análise as manifestações da estrutura patriarcal na cultura muçulmana e os riscos em resistir aos papéis de gênero impostos pelos costumes.
Já nos primeiros minutos o filme deixa claro que não é do tipo que faz concessões ao espectador: em um plano fechado, Zahira (Lina El Arabi) se informa com uma enfermeira, fora de campo, sobre quais as opções ela tem à disposição para realizar um aborto. “Você já esteve no meu lugar?”, questiona. Grávida do namorado, a adolescente é forçada pela família, com quem vive na Bélgica, a interromper a gestação. O que a garota não conta é, como forma de fazer com que ela entre nos eixos, seus pais (Babak Karimi e Nina Kulkarni) determinam que ela se case com alguém escolhido por eles. Opondo-se a ideia, a jovem terá o apoio de sua amiga Aurore (Alice de Lencquesaing) e entrará em conflito com seu irmão mais velho, Amir (Sébastien Houbani).
Com uma narrativa tensa que cresce como água que entra em ponto de ebulição, Streker é bem sucedido em construir um ambiente opressor. Ao mesmo tempo em que privilegia um olhar documental, com cortes secos e câmera na mão, o diretor investe na claustrofobia, confinando seus personagens em planos fechados e com pouca profundidade de campo. Planos gerais, em contrapartida, em muitos momentos servem para o espectador exercitar seu olhar de voyeur e espiar a tragédia: nesses termos vemos a protagonista abraçar o irmão após a realização do aborto, a família se desesperar ao receber a notícia de que a Zahira não pretende voltar para casa e o pai ter um enfarte após saber que a filha fugiu do casamento.
A atmosfera repressiva também se materializa na fotografia de Grimm Vandekerckhove. Contrapondo a claridade dos espaços abertos, local de liberdade da personagem principal, à meia luz amarelada dos cômodos da casa da família principal, o espaço doméstico que a princípio reflete aconchego, passa a transmitir a hostilidade do confinamento.
No roteiro, o cineasta belga, que se beneficia com o trabalho sólido do elenco, é eficiente em desenvolver uma história que cresce com os conflitos no dia a dia. Mostrando Zahira como uma jovem adaptada a vida ocidental, mas que não abre mão de algumas tradições enraizadas na sua herança – um dos detalhes mais curiosos sobre sua caracterização é como ela usa o lenço de todas as formas, que não como hijab -, o longa consegue causar incomodo com os episódios de choque cultural. Além do desfecho trágico, de difícil digestão, presenciamos um dos pretendentes da jovem na sua primeira conversa por videoconferência dizer que a ama e difícil não ficar boquiaberto com um casamento inteiro ser realizado via Skype.
Assustadoramente natural, o que pode fazer com que o filme seja acusado de não explorar seus conflitos de forma febril, “A Garota Ocidental” de fato é simples, mas é efetivo em seus questionamentos. Inquietante com o comportamento extremo a que chegam seus personagens, quem sabe faça a ficha do espectador cair para as monstruosidades que o machismo e o patriarcado são capazes de criar. E sempre bom lembrar: aqui a gente também mata.
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