Certos laços são impossíveis de romper. As nuances da vida são capazes de criar hiatos, mas nos momentos de necessidade o amor construído ao longo das décadas se faz mais forte. Os laços fraternais detém essa potência, e é sobre essa cumplicidade, amor, desmistificação e empoderamento que trata a narrativa do longa “A Glória e a Graça”.
Graça (Sandra Corveloni) é mãe solteira de dois filhos de pais diferentes e, com muito amor e dedicação, cria Papoula (Sofia Marques) e Moreno (Vicente Demori). Um dia, ao investigar uma sinusite, descobre um aneurisma. Sozinha, se vê sem saídas ao pensar em deixar seus filhos desamparados. E após longos 15 anos de afastamento, Graça contacta seu irmão Luis Carlos para contar sobre sua condição e pedir sua ajuda. No entanto, o que ela vê é uma mulher linda, bem resolvida e economicamente estável. Como era de se esperar, leva um tempo até que os ponteiros se ajustem, mas a aproximação de Glória (Carolina Ferraz) acaba sendo natural e inevitável.
Os motivos da briga que levaram ao afastamento das irmãs se revela ao longo da trama, mostrando que Graça, apesar de menos problemática nos padrões socialmente aceitáveis, demonstrou mais desvios de conduta que sua irmã. E, mesmo com todo apoio que passa a receber de Glória, ela ainda resiste ao se desconstruir ao longo dessa reaproximação, mas acaba por se tornar menos preconceituosa e egoísta.
No papel de Glória, a atriz Carolina Ferraz é um escândalo. Além da maravilhosa caracterização, sustenta a personagem de forma digna e potente. Representando muito bem milhares de travestis e transexuais que levam vidas iguais a de qualquer hétero, mas nem por isso são aceitos dentro de uma sociedade hipócrita. O trabalho sincero da artista, ajuda o espectador a refletir sobre um assunto importante: o que qualifica uma pessoa para maternidade? Pois Glória pode dar aos sobrinhos todo o necessário, mas mesmo em seu íntimo essa questão é complicada de lidar. A crítica que se pode fazer se dá em torno dá representatividade, uma vez que uma mulher interpreta um personagem que deveria (ou poderia) ser representado por uma travesti. No entanto, ter a frente do filme um nome de peso sustentando de forma tão honesta e respeitosa, não cria demérito nesse sentido. Além disso, o longa abre espaço para outras atrizes travestis e transexuais mostrarem seus trabalhos, o que é bem interessante.
Se por um lado temos a atuação primorosa de Carolina, por outro, temos um elenco morno. Mesmo com o roteiro profundo de Lusa Silvestre e Mikael Albuquerque, a direção de Flávio R. Tambellini não conseguiu equilibrar o elenco no desenrolar da trama. E assim se impõe um Gap entre atuações que salta aos olhos.
De forma geral, o roteiro merece ser destacado por tratar de temas tão densos de forma leve e delicada. Uma doença fatal, questões familiares, homossexualidade, identidade de gênero, maternidade. Tudo tratado de forma leve, com muito respeito e sinceridade. Assim, abrindo os olhos do público para a necessidade de naturalização de questões que já passaram da hora de serem naturais.
Com uma narrativa muito bem estruturada e uma fotografia que cria uma atmosfera mais antiquada, algo quase vintage em certas cenas, bem como enquadramentos fechados que ajudam bastante na aproximação e identificação do público com os personagens, somos apresentados a uma produção que propõe a humanidade e vulnerabilidade que falta em filmes do gênero.
Um filme nacional de muita qualidade, com potencial para emocionar. Um trabalho bonito, que faz parte da boa fase do nosso cinema e precisa ser apreciado.
https://www.youtube.com/watch?v=_DD6mbm2guo&t=29s
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