Lançado em 2019, Human Lost chega ao Brasil pela Sato Company e convida os espetadores a conhecer a obra de Osamu Dazai pelas lentes distópicas de um cyberpunk sobre bioética, identidade, e luta por ideais. Fomos conferir e deixamos abaixo nossa opinião na crítica a seguir, de praxe sem spoilers!
Livro quatro:
Baseado no livro homônimo e maior sucesso de Osamu Dazai, “Ningen Shikkaku”, no Brasil traduzido como “Declínio de um homem”, “Human Lost” é, para começar, um caso ousado de adaptação: apesar de toda a aclamação (e em razão dela), recriar as imagens de Dazai — provocativas, fortemente adesivadas ao seu fluxo de consciência — com uma outra linguagem exige sair do óbvio, e a proposta do longa é um convite a reimaginar esse microcosmos de uma forma que o espectador certamente não esperava.
É evidente que, como duas mídias distintas, não seja justo comparar a animação de 2019 com um romance de autoficção de 1948 — para além de tudo, há essa barreira geracional que torna ainda mais claro que não adianta ser literal para recontar essa história com uma linguagem de seis décadas atrás (o que seria impossível, mesmo que se pretendesse). Assim, vale o velho lembrete: comparações podem ser feitas, mas sob a perspectiva de que esse é um trabalho que precisa ser analisado de forma independente.
Dito isto, se por um lado há um evidente trabalho de intervenção artística, repaginando a obra para um contexto cyberpunk, a mesma ousadia ficou tímida no quesito conteúdo: não há o mesmo esforço de se fazer um comentário sobre o material original através de, no caso em questão, contraste de perspectivas. E o que isso quer dizer?
Que se faça um exercício: pergunte a qualquer pessoa (ou máquina) calejada com o gênero cyberpunk quais são os tropos/clichês que você esperaria encontrar em um anime com a temática — temática obscura, discussão de bioética e criação humana, high-tech e low-life, etc.
Ao desenhar uma história cyberpunk prototípica, o resultado deve sair muito próximo de “Human Lost“, e o motivo está na escolha da direção de apostar que, ao colocar juntar Dazai e futurismo distópico, a receita estaria pronta para vender, mesmo que a massa (o cyberpunk) tivesse sido feita por máquinas e saiam da fábrica outros tantos bolos iguais todos os dias.
A simples ideia de colocar lado a lado o desespero de Youzou Ooba, o protagonista do livro, no fim do dia um lobo solitário, dentro da roupagem distópica do cyberpunk é mesmo de se tirar o chapéu — e, por si só, já vale que se dê uma chance ao longa. Afinal, nos traz logo pela premissa um relance de comentar sobre as atualizações das ansiedades modernas frente a um mundo tão áspero, individualista — e, agora, materialista.
Contudo, há uma perda de potência no meio do caminho que não é difícil de rastrear: com ambições tão grandes de alcançar o céu, o Sol derreteu as asas de cera desse sonho. As pessoas possuem vidas longas graças à tecnologia (high-tech), mas trabalham dezenove horas por dia e tem que utilizar máscaras de gás para suportar esse mundo arrasado (low-life) — nada disso entra como pretensão narrativa senão em um nível superficial, quase etéreo; a crítica social fica comodificada, domesticada o suficiente para ser vendida ao maior número de pessoas possível e não cutucar a ferida.
Também em oposição à novela, apesar de ser um filme violento e com classificação adulta, tampouco o longa é cru ao apontar o desespero existencial. Para aqueles quem conhecem o material original, fica claro que se optou por suavizar conceitos e passagens que ditam o tom e rumo da obra. Enquanto material novo, essa é uma liberdade possível e que deve ser respeitada, mas se deve questionar o que foi feito no lugar para propor, acrescentar e/ou subverter as expectativas do livro.
Esse é o maior ponto fraco do filme. Seja por estar adaptando Dazai, quanto por se tratar de uma obra cyberpunk, a construção de um universo fica abalada ao dar atenção demais para linhas narrativas que não progridem — como ser explicitamente didático, sobretudo no primeiro terço do filme — quanto por, paradoxalmente, não se dê espaço para as personagens construírem suas individualidades, relegando-as às expectativas de lugares comuns. As cenas de ações são divertidas e o CGI dá o seu charme especial às coreografias, porém, a experiência fica prejudicada pelo se relacionar com os personagens ter se tornado difícil por tamanha amplitude que pretendem representar (guerra x paz, vida x morte, etc.).
Em retrospecto, é um pouco agridoce revisitar Ningen Shikkaku nas telinhas porque se pode resumir os elementos trazidos do original à referências superficiais, sem que esse esvaziamento tenha decorrido de uma subversão proposital, mas à dificuldade encontrada pela direção em trabalhar um comentário e atualizar a obra para o século XXI — a divisão tripartida da obra?; apenas é um elemento estético, não de conteúdo.
Quando dizendo respeito ao restante da produção, há uma fila de elogios que seguram a coerência interna de Human Lost como um quem sabe futuro clássico camp: os próprios seiyuus Fukuyama Jun e Mamoru Miyano levam do currículo o star quality para abrilhantar qualquer aparição, e no longa não é diferente; se há algum comentário a se fazer diante dos personagens, não é atacando pelo quesito atuação que encontraremos um demérito.
Sabe-se que há um movimento crescente daqueles descontentes com o uso de CGI na animação japonesa, mas mesmo aqueles que torcem o nariz devem dar o braço a torcer que a escolha da técnica para o filme contribui para o próprio conteúdo do filme — o mesmo poderia se dizer, por exemplo, de Belle (2021) — e, no quesito trilha sonora, um tema multilíngue integrando J. Balvin e m-flo pode não ter chegado ainda aos seus ouvidos — visto o distanciamento de temas mais comerciais — mas vale ao menos ser conferido; não é o que se esperaria dessa colaboração.
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