A peça “Luther King: O Musical”, produzida pela Cia Nissi e apresentada no Teatro Nissi, aborda a vida de Martin Luther King Jr., o líder negro do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 50. O roteiro e a direção de Caíque Oliveira exploram as complexidades desse líder político nos dias de hoje, em um contexto em que o ativismo negro e a conscientização antirracista ganham espaço. A peça ressoa como um lembrete poderoso da necessidade contínua de persistir na busca por um mundo mais equitativo e inclusivo.
A montagem nos mostra cronologicamente os momentos que precedem a ascensão de Luther King como líder político até a sua morte, se tratando de uma peça biográfica. A peça inclui apenas uma digressão, apresentando o jovem Luther King, interpretado por Davi Fields, para que o público observe como Martin sempre se inquietou com injustiças sociais e o racismo. A peça faz menção, até a construção dos momentos finais, ao célebre discurso iniciado com “Eu tenho um sonho”, proferido no dia 28 de agosto de 1963. No entanto, a escolha de musicar partes desse discurso ao invés de utilizá-lo de forma integral parece atenuar seu impacto, apesar de seu papel central na trama.
A peça traz à cena momentos cotidianos de Luther King, sua relação com a família, amigos e a igreja, com um tom afetivo, o que é um grande acerto, tendo em vista que humaniza a figura do líder, algo geralmente negligenciado por diversas produções artísticas. A interação do protagonista com sua esposa, Coretta King e a filha, Yoki King, é bem construída, e demonstram o lado paternal e conjugal, ressaltando sua humanidade. Os diálogos demonstram a força dessa família, bem como suas inseguranças e esperanças, pois todos sabem que algo deve ser feito, ainda que não se saiba ao certo como. As aparições de Rosa Parks e Mahalia Jackson possuem uma aparição mais de fundo, onde a primeira é um pouco mais desenvolvida que a segunda. O lado extracênico concentra a tensão dramática, tendo em vista que nele é articulado os inúmeros pedidos de prisão, a perseguição política, a engrenagem do racismo estrutural do mundo branco que alimenta a criminalização de Luther King e seu movimento pacifista.
Assim, a relação cena/extracena é construída em torno da tensão racial estadunidense daquele período, muito bem representada na humanização da população negra de um lado e no ataque sistemático e resistência a esse mundo do outro, o que ressalta um trabalho magistral de Caíque Oliveira no roteiro e justifica os 180 minutos de duração que constroem essas oposições.
A cenografia assinada por Alan Maiolli e Joy Oliveira utiliza elementos como prédios móveis e estruturas semelhantes para criar diversos cenários. A ideia desse cenário maleável possui diversas funções que funcionaram muito bem na elaboração dos lugares em que a história se passa, tais como a casa de Luther King, a igreja batista que ele frequenta, salas de reuniões etc. A peça sai do palco apenas uma vez, em uma das cenas iniciais em que um pastor está cantando. Ademais, todos os acontecimentos ocorrem no palco.
A iluminação do espetáculo não almeja um esplendor deslumbrante, mas abraça uma modéstia que, paradoxalmente, reivindica atenção. No entanto, é evidente que sua economia estética e abordagem poderia ser mais estrategicamente planejada, especialmente quando se trata de enfocar algumas atuações em momentos cruciais do roteiro. A falta de atenção à corporeidade dos personagens faz com que o jogo entre a cena e a luz se perca, de modo que fica a impressão de que o projeto de iluminação poderia ser mais integrado ao conjunto da produção para exaltar com mais qualidade os momentos que deseja.
O protagonismo da peça se concentra em Martin Luther King Jr., interpretado por Guilherme Augusto, e sua esposa Coretta King, vivida por Nicole Sacramento, que conseguiu transmitir toda a força da personagem. Outro papel com esboço de protagonismo é Rosa Parks, encarnada por Jéssica Stephens, que teve um arco bem desenvolvido e, embora aparecesse em poucas cenas, conseguiu ter uma atuação de destaque. Embora no teatro não seja tradicional, a atuação de Jéssica como a personagem com certeza poderia ter um spin-off.
A hierarquia dramática privilegia Martin Luther King e sua família, ressaltando o equilíbrio entre o ativismo negro e a posição de pastor batista. Os demais personagens são desdobramentos desse equilíbrio, como membros da igreja ou outros ativistas, por exemplo. A economia dramática entre presentes e ausentes, para além da tensão já supracitada entre cena/extracena, funciona muito bem, onde a temática contorna a peça e as personagens interpretadas por atores brancos se deslocam no oposto aos protagonistas, como antagônicos. Tanto a hierarquia como a economia dramática fomentam o ponto de vista da história, que é dividido entre Luther King e o próprio público, que se relaciona a partir de sua visão privilegiada do que os protagonistas não veem. Embora o público sempre ocupe esse espaço, esse saber é incorporado na peça pelo fato dela ser histórica, o que constrói certas expectativas, tendo em vista que a plateia já sabe o desfecho e o aguarda.
No que diz respeito à coreografia, o trabalho de Marçal Siqueira é digno de louvor. Ela não apenas complementa a trama, mas também se eleva como uma forma de expressão autônoma, executada de maneira muito bem sincronizada pelos dançarinos.
Um dos recursos mais admiráveis da peça é o excelente trabalho com a ideia do coral/coro, que além de congregar os dançarinos, também inclui pessoas que cantam e representam a voz de tensão do país, tendo em vista a conjuntura política da época. As letras são animadas e dançantes e os canto-solos são magníficos. Entretanto, as músicas cantadas em inglês ocupam um lugar duplo: embora a peça tenha como centro os Estados Unidos, o que justificaria a escolha do idioma, a escolha em ser em inglês em um país onde apenas 1% da população fala a língua e cujo público previsto é majoritariamente negro, implica uma dificuldade sistemática e estrutural ao acesso à língua, tornando essa escolha meio fora de lugar.
Retomando ao que já foi apresentado, o coração pulsante da peça é o racismo estrutural que surge como articulador de “Luther King, o Musical”. Esse mecanismo é um grande acerto por conseguir, ao tratar de um caso particular nos EUA, estabelecer certa semelhança com todos os países que sofrem os desdobramentos da violência colonial. Isso se manifesta pela relação entre a narratividade e a dialogicidade. A primeira é focada na construção de paralelos diretos, como nos telefonemas com acusações contra a vida e a família de Luther King, por exemplo, e a segunda é pensada não para apresentar os personagens, mas fazer avançar a história.
Disso decorre que, ao encadear fatos históricos para representar a vida de Luther King, a escolha por um trabalhado mais dialogado, que tensiona a relação entre brancos e negros, trazer a não-violência para a cena é uma escolha triunfal que encadeia bem a proposta teatral, o que torna o roteiro muito consistente, com crenças, princípios, valores, sentimentos, sentidos que são postos e abordam o lado humano, religioso, militante de maneira bem intrínseca.
Em sua totalidade, “Luther King: O Musical” é uma produção teatral que merece reconhecimento e louvor e se destaca ao abordar de forma primorosa a tensão racial e o ativismo de Luther King, oferecendo uma experiência teatral envolvente e reflexiva.
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