Poder de persuasão em questão
Vivendo em uma democracia sem censura, temos a consciência de que um dos nossos direitos é o da palavra, da livre expressão, de expor o que pensamos, como o fazemos e porque o fazemos. Mas quando se trata de um assunto polêmico, trágico e de dores que nem o tempo seria capaz de apagar, nós realmente temos o direito de exercer e expor uma posição contrária para com esse tema? Essa pergunta muito pertinente e atemporal é uma das bases para o novo filme do diretor Mick Jackson, que volta aos cinemas depois de 14 anos fora do circuito cinematográfico.
“Negação” (Denial), baseado no livro “History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier” – “História em Julgamento: Meu Dia no Tribunal com o Negador do Holocausto”, em tradução literal – escrito pela Ph.D em História Judaica, Deborah E. Lipstadt, foi lançado nos Estados Unidos em outubro de 2016, mas somente agora chega aos cinemas brasileiro.
A narrativa autobiográfica conta a vida da própria Deborah Lipstadt, vivida por Rachel Weisz, uma conceituada pesquisadora que ataca veementemente em seu livro, “Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory” – “Negando o Holocausto: O Grande Roubo à Verdade e à Memória”, em tradução literal -, o historiador David Irving (Timothy Spall) que prega que o Holocausto não existiu e é uma invenção dos judeus para “lucrar” midiaticamente. Julgando-se prejudicado pelo que foi publicado, Irving entra com um processo por difamação contra Deborah na Inglaterra, porém, pelas leis britânicas, em casos do tipo é a ré quem precisa provar a veracidade da acusação. Logo, ela se vê em uma disputa judicial que, mais do que envolver dois estudiosos da História, coloca em dúvida a morte de milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
O roteiro escrito por David Hare (“As Horas” – 2002) segue uma linha conceitual e verídica embora não esboce nenhuma emoção verdadeira através das palavras se comparada a outras obras de sua autoria. Bem contextualizado, o processo que começou no início dos anos 90, mas só foi concluído no início dos anos 2000, serviu como sua base de pesquisa e os diálogos estabelecidos dentro do tribunal foram todos retirados do próprio registro do tribunal. Os personagens são subdesenvolvidos e a grande trama sobre a negação do Holocausto, embora importantíssima, passa como uma linha a ser seguida. Um ponto interessante dentro da contextualização é o impasse da personagem que não aceita muito a forma como é conduzida o processo e por duas vezes durante o filme Lipstadt olha para a estátua de Boadicea (uma rainha que liderou uma revolta sem êxito contra os romanos) e suas filhas, no Westminster Pier, em Londres.
Fora das telonas desde 2002, não podemos afirmar, infelizmente, que o diretor Mick Jackson fez um bom retorno. Durante todo esse tempo, ele trabalhou com produções televisivas e “Negação” ficou exatamente com a marca de um filme para televisão. Com os atores, estabeleceu-se uma narrativa fria, talvez por medo de cair no melodrama, mas a aposta acabou deixando o filme com um ritmo lento. Oscilando entre belíssimas cenas e outras que simplesmente não casam narrativamente, essa questão nos leva ao fraco e despreparado trabalho de montagem/edição realizada por Justine Wright, que já havia apresentado um brilhante resultado com “A Dama de Ferro” (The Iron Lady), em 2011. Contudo, o peso desse equívoco deve ser dado a ambos os profissionais.
Outro impasse da produção é a forte pigmentação ou coloração na direção de fotografia de Haris Zambarloukos (“Cinderella” – 2015). Para compreender essa falha, que pode ser melhor adjetivada como excesso, não podemos deixar de comparar com o design de produção de Andrew McAlpine (“Como Eu Era Antes de Você” – 2015), mesmo sendo segmentos diferentes. Por ser uma trama épica, afinal os anos 90 já se foram há praticamente vinte anos, a construção visual da cenografia, objetos cênicos, figurinos e caracterização condizem perfeitamente com a estética da época, sendo apresentados de maneira natural. Já na fotografia houve uma necessidade de exaltar a coloração amarela, muito presente nos filmes da época em que se passa a história, mas que poderia facilmente ter menos contraste e saturação para torná-la instigante e verossímil.
Se tratando de verossimilhança, o que de fato segura toda a produção é o seu elenco que, mesmo sem atuações brilhantes, desenvolvem com naturalidade uma estrutura pouco emocional, voltado para a racionalidade do processo, mas com intrínsecas camadas construídas de maneira subliminar, à fazer com que o público as desconstrua. Rachel Weisz, que está longe de uma excelente interpretação, consegue facilmente conquistar o seu espaço e obviamente a empatia. Porém, essa conduta também se deve a personagem fictícia (no filme) e a real (que viveu a história) que, como mulher e judia, encarou o desafio de se provar num ambiente completamente dominado pelos homens e fazer com que sua origem não se tornasse uma mentira.
Para se construir e vencer o caso (isso não é um spoiler para quem estudou história na escola e/ou jogar no Google) Lipstadt enfrentou adversidades entre o jurídico norte-americano e o britânico, fazendo necessário a presença de Anthony Julius (Andrew Scott), que preparava o caso junto com sua equipe e Richard Rampton (Tom Wilkinson) que apresentava ao juiz como defesa no tribunal. Andrew Scott estabelece uma dualidade entre um advogado sedutor que conquistou a fama por cuidar do divórcio da Princesa Diana e um homem fiel às leis e a conduta necessária para se ganhar o caso sem grandes alardes. Já Tom Wilkinson vem com uma construção mais misteriosa e um refinado humor trágico, dado os acontecimentos, que muito se observa mas pouco se conclui. Ou seja, ele nos entrega uma construção bem delineada, contudo não podemos concluir quem verdadeiramente é Richard Rampton, e isso é um deleite.
Umas das frases de divulgação do filme, “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, dita pelo político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazi, entre 1933 e 1945, Joseph Goebbels, é perfeita para descrever historiador David Irving, vivido por Timothy Spall que, em uma participação regular, consegue roubar as cenas por sua vivacidade agressiva e intelectual. Para ele (o personagem), o Holocausto não passou de uma mera mentira criada pelos judeus e que não houve uma câmara de gás onde eram dizimados. Tal crença, ainda que bizarra, reverbera até hoje e Spall consegue trazer a tona, ao espectador, um mix de repulsa a incredulidade por tal atitude.
Entre erros e acertos, podemos dizer que “Negação” é um filme regular que poderia ser muito mais do que é apresentado. A emoção de uma história real e contraditória não se transpõem a tela e não invade nosso imaginário, mas consegue ser tão contemporânea quanto necessária voltando a nossa pergunta no início de nossa crítica. A liberdade de expressão nos dá o direito se expor, negar e mentir sobre algo que causa dor ao seu próximo?
https://youtu.be/nhbUAT_e6fA
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