A peça “O avesso da pele”, foi baseada no livro de mesmo nome do autor Jeferson Tenório e teve sua dramaturgia assinada por Beatriz Barros e Vitor Britto. Apresentada no Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), na rua Maria Antônia, a montagem teve todos os seus ingressos esgotados e conseguiu transportar, com muita qualidade, a narrativa do livro para o palco.
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As quase duzentas páginas do livro foram convertidas em uma peça de cem minutos, que preserva quase integralmente os episódios da história. De fora, ficaram apenas o aprofundamento da biografia de Martha, mãe do protagonista, e alguns dados biográficos de Pedro, o protagonista. Esse recorte realizado pelo grupo não prejudicou de maneira significativa o que foi encenado, apenas em momentos pontuais no roteiro, o que deixou algumas pontas soltas. O enfoque maior da peça foi a relação entre pai e filho, Henrique e Pedro, respectivamente, algo que também é o cerne da obra.
A montagem do Coletivo Ocutá preservou a estrutura temporal do livro, cujas sequências são marcadas por uma narrativa não-linear. Há insignificantes alterações na ordem dos acontecimentos que são apresentados ao leitor, apenas para que a dramaturgia possa se mostrar coerente e funcional para ser transmitida ao público. Afinal, tanto o livro quanto a peça trabalham a construção de um quebra-cabeças afetivo de um filho que precisa curar um pai que já se foi, e ao fazer isso, se encontra, o que encaminha a história para seu instante final.
Ainda que tenham ocorrido alguns poucos recortes, as cenas são importantes à medida em que reconstituem memórias e são bem dosadas, não se estendendo demais para enrolar o espectador, o que faz com que cada qual tenha uma preciosidade e seja completa em si mesma. Ademais, a história é fechada para aquilo que se propõe, pois as pontas soltas não são vazios muito significativos para a temporalidade.
Embora a peça adote o ritmo temporal do livro, com vai e vens entre o passado e o presente, tal ritmo se construiu com transições bruscas em muitas cenas no palco, o que se mostrou um pouco cansativo.
Quanto à cenografia, a peça começa com uma pilha de livros, papeis e revistas rasgadas no centro do palco, de onde começa uma cacofonia de vozes que revela o elenco escondido ali, que se levanta de maneira sincrônica enquanto recita falas dispersas. É uma abertura simbólica que indica a representação de personagens que saem das páginas para o palco, reforço de ser um teatro fronteiriço. Em seguida, os atores arrastam esses papéis de modo a desenhar uma espiral que delimita o palco. De fora desse limite, encontram-se quatro cadeiras, duas de cada lado e uma para cada ator, que também funciona como a coxia, e alguns utensílios dispersos.
Esses objetos, aliados a algumas falas do texto, vão construindo os lugares dramáticos que mostram os acontecimentos da peça. Assim, temos o apartamento de Henrique, as ruas de Porto Alegre, uma sala de aula etc. que vão se tecendo e reconfigurando conforme a necessidade do roteiro, o que confere à espacialidade uma materialidade mutável e fluída. Esses objetos também auxiliam na corporeidade, pois as camisas, vestidos e outras roupas, eram usados pelos atores para dar vida ou tornar presente de maneira simbólica a outros personagens.
Grande parte dos acontecimentos ocorriam no palco, mas nos instantes finais da peça, há um tipo de quebra da quarta parede que transformou o público em estudantes de uma sala de aula, recurso extracênico. Esse tipo de escolha estética é arriscado e exige que a plateia entre em cumplicidade interna e com o elenco, o que ocorreu no dia em que fomos assistir. Entretanto, não havendo isso, esse momento da peça corre o risco de gerar um ambiente desconfortável e embaraçoso.
Em relação aos personagens, como dito, há uma maior ênfase em Henrique e Pedro, pai e filho, mas outros personagens fazem suas aparições conforme a necessidade. Os atores Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli, Vitor Britto e Victor Salomão se alternam entre quase todos os personagens, e todos dividem o protagonismo discursivo de Henrique e Pedro. O uso da polifonia explorou bem as características individuais dos atores, mérito da direção de Beatriz Barros. As oscilações de personagens por atores foi um artifício frequentemente utilizado na encenação, o que em alguns momentos gerou confusão, mas como houve um nítido trabalho na construção física, vocal e de atuação de personagens, não foi difícil se situar. Cabe lembrar que Vitor Britto foi indicado ao prêmio APCA na categoria de melhor ator.
Apesar do ponto de vista da narrativa ser oferecido ao espectador através de Pedro, tal como ocorre no livro, a hierarquia dramática privilegia Henrique, seu pai, e todas as relações que ele teve durante a vida. A peça é uma carta fúnebre de um filho ao pai e também a biografia desse pai que auxilia o filho a se encontrar no mundo, e essa premissa é latente em todo o momento da encenação.
O roteiro é elaborado totalmente com texto do livro-base, com intervenções apenas dramatúrgicas. A quebra da quarta parede que ele propõe apenas aproxima o espectador do personagem cuja tragédia dramática em instantes ele presenciará. De certa forma, estar na sala de aula de Henrique e ser seu aluno nos joga a um apego afetivo ao personagem, pois você não o conhece apenas pelo que vê no palco ou pelo que ouve de Pedro, mas pelo engenho teatral, você convive com ele por um breve instante.
O texto é sublime. Em muitos momentos é também emotivo e sensível e o trabalho com os atores que o avivam é muito bem executado. O cotidiano do racismo estrutural, com seus tentáculos da violência policial, doméstica, abandono paternal, relações inter-raciais e a condição de sujeitos negros na sociedade se impõem na vida dos personagens, dos quais a semelhança com a realidade é gritante – e brutal, como acompanhamos na peça – e contrasta com o lirismo magnânimo da relação pai e filho.
Em suma, a adaptação para os palcos de “O avesso da pele” é uma montagem quase impecável do Coletivo Ocutá. Embora alguns recortes tenham sido feitos para adequar a narrativa ao palco, a essência do livro foi mantida, destacando a poderosa relação entre pai e filho como cerne da obra. A peça emociona e provoca reflexões profundas, enriquecendo a experiência teatral de maneira profícua.
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