Sofia Coppola é a segunda mulher na história a ganhar o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes. Até então, apenas a russa Yuliya Solntseva havia recebido o título; isso em 1961, há mais de 50 anos. “O Estranho que Nós Amamos”, seu último longa, foi o que lhe garantiu a honraria, que chega em boa hora não só como forma de celebrar a qualidade do trabalho da cineasta, mas também seu amadurecimento enquanto realizadora.
Adaptado do romance homônimo de Thomas P. Cullinan publicado em 1966 – que ganhou uma versão para o cinema meia década depois pelas mãos de Don Siegel –, o filme retoma uma imagem que a diretora explorou em sua estreia com “As Virgens Suicidas” (1999): um grupo de mulheres confinado em uma casa. Só que a casinha no subúrbio de Detroit no final dos anos 90 agora dá lugar a um casarão colonial em algum lugar da Virgínia durante a Guerra de Secessão e as irmãs Lisbon são estudantes de um internato para moças.
Quem chefia o pensionato em questão é Martha Farnsworth (Nicole Kidman), que auxiliada por Edwina (Kirsten Dunst), cuida da educação de Alicia (Elle Fanning), Amy (Oona Laurence), Jane (Angourie Rice), Marie (Addison Riecke) e Emily (Emma Howard). É 1840, os Confederados ocupam a região e só elas continuam ali. Quem pôde fugir, inclusive os escravos, assim fez. Tentando manter de pé a vida cotidiana mesmo com um conflito violento batendo à porta, o internato vê sua dinâmica alterada quando uma das alunas encontra um combatente das tropas inimigas ferido no bosque. Prestando ajuda ao homem (Colin Farrell) “como boas cristãs”, os problemas começam a aparecer quando ele passa a se envolver com algumas delas, em particular com Edwina, Martha e Alicia.
Dos filmes da diretora, esse talvez seja o mais direto. Bem, a melancolia, os tons pastéis, as protagonistas loiras, assinaturas de sua estética, se mantém na tela, mas através de um transcorrer narrativo enxuto. Coppola é conhecida por seu lirismo, por construir tramas fluídas e enredos que se movem, na maioria das vezes, ao sabor de uma relação subjetiva entre seus personagens, de divagações sobre a vida e o cotidiano. Já em “O Estranho que Nós Amamos” existe essa dinâmica, mas com foco maior no desenvolvimento da ação, para onde ela leva.
Simplicidade que se traduz na forma como ela pisa pela primeira vez no terreno do suspense. O material de divulgação sugere que o projeto trata-se de um filme de mistério com possíveis reviravoltas mirabolantes, mas não é o caso. Trabalhando bem com o sentimento de expectativa, ela hipnotiza o espectador com seus planos gerais, longos, de movimentação vagarosa, deixa-o em suspenso com o silêncio, porém o roteiro não se apoia tanto em abocanhá-lo pela surpresa. Não há uma série de eventos inesperados. Com apenas uma virada, ela nos faz acompanhar passo a passo dos desdobramentos seguintes, que nos é claro, lógico, não imprevisível. Quando Cabo McBurney passa pelos portões dos Farnsworth, a tragédia já está anunciada.
Entretanto, por mais que o caminho adotado pela cineasta seja descomplicado, isso não faz com que o longa seja pobre em signos. Dando continuidade a ideia de como o espaço e tempos específicos afetam a relação entre indivíduos, noção latente ao longo de sua filmografia, é imperdoável não notar como ela injeta significado em minúcias. O laço azul-claro que decora a gola de Edwina – que anseia que ele seja arrancado pelo novo hóspede – visualmente rima com o trapo da mesma cor que, amarrado à grade da casa, avisa aos militares sulistas que há um inimigo entre eles. Já quando o homem sugere a líder do grupo que as rosas precisam de poda, não são só as flores no jardim que ele pretende cortar.
Curioso também é como no figurino, elemento importante nos filmes da diretora americana, existe um raciocínio. O branco predomina nos vestidos das moças do internato, mas a variação de cores nos detalhes das roupas ajuda a mapear o papel de cada uma ali. As mais jovens, na maioria das vezes, usam tons neutros, como marrom, bege, amarelo; elas têm menos poder. Alicia, transbordando sexualidade, é marcada pelo cor-de-rosa e lilás, enquanto Edwina, reclusa e pura, é marcada pelo azul. Nos trajes de Martha vemos repetições dessas cores, mas é nela que vemos preto: tonalidade usada apenas pelos homens, uma forma de demarcar sua posição de comando.
Na fotografia de Phillipe Le Sourd as pistas continuam. Valorizando a luz natural do sol, o interior do casarão é mergulhado em sombras, o que faz com que boa parte dos confrontos entre os personagens se dê na contraluz das janelas. Na noite, a luz das velas ajuda a criar a atmosfera de apreensão e apontar a intenção dos personagens: na última oração que as moças fazem com o Cabo, cenas antes de uma virada importante na narrativa, só os rostos delas estão iluminados, o dele está coberto pela escuridão.
Com um plano final revelador – que, assim como o que inicia o longa, dialoga com a versão de 1971 –, “O Estranho que Nós Amamos” é inquietante sem nunca abandonar a graça. É uma prova do amadurecimento de Sofia Coppola nesses seus quase 20 anos de carreira. Seria uma nova fase para seu cinema? Só o tempo dirá.
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