Muito além de uma época
Quando o grito da liberdade se encontra por muito tempo preso, inerte dentro do peito de alguém, não existe força no mundo capaz de impedir a sua propagação quando esse desejar livrar-se de suas correntes. E uma vez liberto, não só irá fazer barulho mas conquistará outras almas escravizadas ao longo da vida, sedentas por uma chama de fé que as direcione para um caminho dissemelhante do atual.
Desde tempos imemoriais que a literatura, o teatro e o cinema, abraçam a busca pela liberdade, independente de sua raiz, e/ou tipo de obra, e constroem narrativas inimagináveis, exalando o fator superação em quase todo seu contexto. Entretanto, poucas foram as práticas realizadas com primor. No início desse ano entrou no circuito brasileiro o maravilhoso “O Regresso”, uma produção de grande escala, que pode ser considerada uma verdadeira aula de cinema. Não é atoa que o filme dirigido pelo tarimbado Alejandro González Iñárritu foi cotado como um dos grandes produtos do Oscar 2016. Com o aproximar de dezembro imaginei que não veria outro filme de tal magnitude, pelo menos não esse ano. Até que tive a oportunidade de assistir “O Nascimento de uma nação” (The Birth of a Nation), do iniciante Nate Parker, que proporciona um autêntico espetáculo visual, compilando qualidade e profissionalismo, para abordar um tema incendiário e extremamente importante.
O drama histórico é inspirado na revolta dos escravos que aconteceu em 1831 no Condado de Southampton, na Virgínia. O enredo aborda a vida de Nat Turner “O Profeta”, o homem por trás da impactante rebelião que acabou 48 horas depois com a morte de centenas de pessoas. Todavia o filme não foca apenas no fato em si, mas decide por aprofunda-se na vida de Turner para explicar o suposto motivo e o momento em que o “pavio foi acesso”, narrando seu passado desde quando era garoto. Com o passar do tempo, a criança constrói uma amizade com o filho do seu senhor e demonstra certo interesse pela leitura, despertando a atenção da matriarca da fazenda que decide ensina-lo usando a bíblia como única fonte de estudos. O conhecimento transforma-o em uma pessoa de grande religiosidade, com um poderoso poder de oratória que atrai os demais escravos da fazenda. Entretanto, a chegada da crise financeira na região atinge diretamente as terras de seu atual mestre e o dom de Nat torna-se moeda perante a situação, razão essa que o coloca em conflito com suas crenças e a realidade vivida pelos negros da época.
Mesmo que o “O Regresso” tenha sido lançado no Brasil esse ano, oficialmente ele é um produto de 2015. Relevância que faz com que “O Nascimento de uma Nação” seja disparada a melhor produção de 2016. Com apenas 10 milhões dólares, orçamento ínfimo para os padrões hollywoodianos, principalmente por se tratar de um filme de época, a monstruosa equipe de produtores contendo mais de 30 nomes, entre eles o do diretor do filme Nate Parker e os conhecidos David S. Goyer (“Batman vs Superman: A Origem da Justiça”) e Edward Zwick (“O Último Samurai” e o inédito “Jack Reacher: Sem retorno”), conseguiu realizar um produto com extrema sapiência e delicadeza, repleto de detalhes precisos, os quais foram fundamentais para enriquecer a obra e deixa-la com a atmosfera necessária.O roteiro, que também pertence a Nate Parker, em parceria com Jean McGianni Celestin, diferente do que muitos pensam, não é um remake do clássico de D.W Griffith (o qual possui o mesmo título). Pelo contrário, surge como uma resposta a obra secular do cineasta americano que trata os negros como ininteligentes e coloca a organização segregacionista Ku Klux Klan como a responsável por salvar a política e os bons costumes do país. A ideia de usar o título emprestado cria um contrapondo espetacular em relação a temática levantada em 1915 por Griffith e propõe ótimas reflexões sobre o preconceito racial, muito bem-vindas também nos dias atuais. – Os roteiristas foram felizes em construir uma narrativa poética, utilizando um assunto tão visceral, sem apelar para o clichê retratado em quase todo filme do gênero (no qual vemos sempre a figura heróica de um homem branco em meio a diversos outros) . Com diálogos bem elaborados e personagens marcantes, somos jogados em um ápice que propõe o espectador sentir o mínimo da situação vivida pela personagem principal, criando quase que um processo de catarse. Não obstante, o texto falha ao apontar uma história real e não contar toda a verdade por trás do conflito, omitindo alguns pontos importantes.
Demonstrada a todo momento, a dor funciona como uma espécie de personagem do filme. É possível encontrá-la em diversas formas, independente se o conflito seja emocional e/ou físico. Ela é revelada até mesmo nos instantes mais sutis, como a leveza do olhar de cada figura, provando o excelente trabalho de direção aplicado por Parker que, aqui, consegue sobressair as funções anteriores mostrando seu talento com veemência. Ele não cria apenas mais uma decupagem padrão sobre filmes de escravidão, o diretor vai além e proporciona um aprofundamento na psique humana, extraindo do publico ponderações indispensáveis a convivência social. A cada enquadramento o artista vai desenhando a história, elucidando um emaranhado de situações criadas a partir de cenas provocantes e puramente realistas.
O esmerado trabalho com a fotografia do filme, desenvolvido por Elliot Davis, responsável pelo esquecido (Porém, ótimo) “Uma canção de amor para Bobby Long”, valoriza tanto os grandes planos abertos, expondo com sensatez toda a melancolia do filme, quanto close-ups capazes de manifestar as angustias mais intrínsecas. O fotógrafo faz uso de uma paleta com cores predominantemente primarias ou pastéis, oferecendo um aspecto envelhecido que facilita o deslocamento do espectador no tempo. Todavia, é possível detectarmos também tonalidades de marrom e preto que acentuam determinadas cenas e que ajudam a engrandecer ainda mais o belíssimo trabalho da direção de arte criada por James Edward Ferrell Jr. e o figurino esplendoroso Francine Jamison-Tanchuck.Nesse ponto, é necessário também valorizar a surpreendente trilha sonora de Henry Jackman, bem como a simplicidade e o ritmo perfeito imposto na montagem de Steven Rosenblum, responsável por “Coração Valente”. O interessante desse fato é que o próprio Nate Parker declarou ser fã do trabalho de Mel Gibson em “Coração Valente”, e que teria se inspirado na produção para realizar sua obra. Entretanto, talvez, um pouco demais, pois se desconstruírmos os dois projetos e outros trabalhos de Gibson, veremos exemplos de sua assinatura em muitos lugares.
Sem sombra de dúvida, esse foi um daqueles elencos escolhidos a dedo. A interpretação que fica mais a desejar é a de Jackie Earle Haley, que mais uma vez oferece uma construção caricata e impulsiva. Já os destaques ficam por conta de Penelope Ann Miller, que vive a desgostosa Elizabeth Turner, mostrando uma profunda entrega em sua personagem; Colman Domingo que, embora tenha sido pouco aproveitado, demonstra uma presença de cena avassaladora; as simples e sinceras atuações de Armie Hammer como Samuel Turner e Aja Naomi King, também podem ser lembradas com gosto; Já a personificação de Nate Parker (Sim, ele outra vez) em Nat Turner, é sensacional. A devoção de Parker com essa persona pode ser notada através de sua performance minimalista que, aos poucos, vai crescendo, ganhando potência, até a explosão final. É impossível não se emocionar com suas cenas.
A obra de Parker é tão pura e prática que vai além do cinema e/ou época. É um retrato feroz da sociedade e deveria ser apreciada como um espelho oferecendo um reflexo da verdade capaz de, sem piedade, despertar e estraçalhar a quietude apática em que muitos vivem até hoje não raciocinando sobre o mal causado. É um desabafo para todos os tipos de escravidão e preconceito, uma obra de arte que mesmo sem ter muito tempo de vida já pode ser considerada um clássico. Merece ser vista, principalmente por cineastas pois, como Alejandro G. Iñárritu, Nate Parker não realizou apenas um filme, ele proporcionou uma escola de como fazer um ótimo cinema com orçamento baixo.
(Do Oscar ao Limbo: (spoilers) O filme vem sendo boicotado desde que foi revelado como o grande vencedor de Sundance em janeiro desse ano. O motivo: uma acusação de estupro envolvendo o grande nome de toda produção, Nate Parker, e o seu co-roteirista Jean McGianni Celestin, quando ainda estudantes da Universidade Estadual da Pensilvânia. Na Ocasião, 1999, Parker foi inocentado e Celestin sentenciado, porém a sentença caiu depois de um recurso. Com o lançamento do filme, a notícia voltou a tona e com a ela a revelação de que a vítima havia colocado fim em sua vida no ano de 2012. Com isso, a opinião pública caiu em cima do filme e isso afastou dele todas as chances existentes, até então, de concorrer ao Oscar 2017. O grande problema questionado é o uso do estupro de duas escravas como estopim para o conflito que resultou no massacre de mais de 60 pessoas brancas entre homens, mulheres e crianças (essas duas últimas não são citadas pelo filme, o que também gera um “erro” de roteiro) – Entretanto, a pergunta que fica é: Até onde podemos julgar a obra pelos seu autor? Seria Parker e Celestin os únicos nomes que trabalharam e depositaram todo o esforço no projeto, ou por trás deles existe uma grande equipe pagando pelos pecados dos dois. Deixo a reflexão para os leitores.)
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