É certo que, nos últimos anos, as câmeras cinematográficas do mundo se voltaram às mazelas sociais. Filmes feitos em diversos países começaram a discutir as diferenças de classes e os problemas gerados pelo embate entre ricos e pobres. O exemplar mais recente a abordar esse tema é o popular ganhador do Oscar de melhor filme em 2020, “Parasita”, de Bong Joon-ho. A produção sul-coreana fez enorme sucesso e pode ter aberto os olhos do público mais casual para o fato de que, além do entretenimento, o cinema também é uma ferramenta de contestação e reflexão em forma de arte. Com isso, é interessante notar que o novo “O Poço” possui suas bases temáticas em outro filme de Joon-ho: “O Expresso do Amanhã”.
O filme espanhol de Galder Gaztelu-Urrutia, produzido para a Netflix, se aproveita de alguns elementos da história do trem pós-apocalíptico que possui camadas sociais, mas muda o cenário para um enorme poço, onde cada pessoa vai recebendo a quantidade de comida de acordo com seu nível dentro dele. Através de uma plataforma, um banquete desce e para por alguns segundos em cada um desses níveis. Então, se nos primeiros há abundância, nos últimos só restam os recipientes vazios e excrementos dos moradores de cima. Que fique claro: não se trata de uma prisão, já que as pessoas entram de forma voluntária para, ao final de suas estadias, receberem uma espécie de certificado valioso.
Todo esse mecanismo é explicado ao recém-chegado, Goreng (Iván Massagué) – e para o expectador – pelo seu colega de confinamento, Trimagasi (Zorion Eguileor), que vive no local há algum tempo. Goreng se mostra um bom homem ao perceber que, dependendo da quantidade de pessoas que há abaixo dele, não haverá comida para todos, enquanto Trimagasi só pensa em sobreviver e sair logo daquele inferno, nem que para isso precise praticar canibalismo. O embate entre os dois se dá por diálogos que demonstram certo grau de ingenuidade ou delírio do novato (como o Dom Quixote do livro que escolhe levar consigo, mesmo podendo ter levado qualquer outro objeto mais útil para tal situação) e o pensamento prático do calejado colega. Claro que a conversa é amistosa quando estão em um nível onde ainda há sobras de comidas. A situação piora quando são enviados mais para baixo do poço.
Outros personagens são inseridos a partir dessa dinâmica de mudança de níveis, como Miharu, uma imigrante asiática que viaja em cima da plataforma de comida para procurar a filha desaparecida, mesmo que seja dito em um momento que a instalação não aceita menores de dezesseis anos. Terá a mulher perdido o senso de realidade depois de presenciar tanta barbárie? Bem, o fato é que o roteiro confina todos esses personagens e os coloca em situações execráveis para discutir a humanidade e a dicotomia entre o topo e a base da pirâmide social, aqui representada pelo poço. De fato, qual a população que está mais presente na base se não os imigrantes como Miharu? Enquanto isso, no nível zero, há um esquadrão de chefes de cozinha para preparar os mais sofisticados pratos, que servirão apenas aos primeiros que o receberem, sobrando para os últimos, como já dito, os excrementos.
Por fim, é justo dizer que “O Poço” é uma ótima surpresa e que conta uma história essencial em tempos obscuros, porém, só não atinge a excelência porque perde um pouco de sua força no final do terceiro ato ao apresentar uma enorme similaridade com conceitos de “O Expresso do Amanhã”, que, neste momento, deixa de ser uma inspiração e se torna objeto de cópia. De resto, há a competente direção em planos fechados de Gaztelu-Urrutia, criando um clima claustrofóbico, enquanto o figurino e a fotografia tornam tudo desolador em seus tons pastel. A fotografia também faz sua parte através de luzes vermelhas infernais em momentos cruciais da trama. Sim, é no místico inferno que estão todas as pessoas de dentro do poço. Os do topo até se julgam salvos por estarem mais próximos do céu, sem nada com que se preocupar além de suas ânsias hedonistas. Mal sabem elas que irão, uma hora ou outra, despencar de suas fantasias e caírem no trash inferior. Para saírem vivos, será preciso um pouco de solidariedade, como na vida real.
Vídeo e Imagens: Divulgação/Netflix
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