Inspirado no livro de Manoel Soares, o espetáculo “Para Meu Amigo Branco” fez uma bem sucedida temporada no Teatro Sesc Copacabana, com várias sessões esgotadas. O espetáculo traz verdades difíceis de engolir, especialmente para o branco que se diz antirracista no discurso, mas é incapaz de colocá-lo em prática. Com direção primorosa e interpretações magistrais, o espetáculo é obrigatório para o momento presente. Confira a seguir a crítica:
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A trama de “Para Meu Amigo Branco” se desenrola numa reunião de pais após um episódio de racismo entre crianças numa escola. Uma menina negra é chamada de “negra fedorenta da cor de cocô” por um colega branco. Ao denunciar o fato na reunião, Monsueto (Reinaldo Junior), descobre que a escola vinha tratando o abuso sofrido pela sua filha como coisa de criança, mal entendido. Um pai branco (Alex Nader), se mostra solidário à causa do racismo. No entanto, tudo muda quando descobre que o ato racista partiu de seu filho.
A direção de Rodrigo França transborda a fronteira do palco e convida a plateia a, literalmente, ocupar seu lugar na estrutura social do racismo. Enquanto o público se acomoda, a professora (Stella Maria Rodrigues) nos convence de que estamos de fato em uma reunião. O encontro acontece no cenário monocromático de Clebson Prates, um espaço todo branco onde estão suspensos livros escritos por autores negros. O simbolismo demonstra o quanto a branquitude domina a estrutura educacional brasileira, e o quão urgente é romper esse ciclo.
Não é só o cenário que é branco, a professora, mediadora da reunião, também veste branco, assim como o pai branco. Em contraste com essa realidade, a figurinista Marah Silva veste em tons de marrom as duas personagens negras, Monsueto e Valéria (Mery Delmond, que também assina o texto com Rodrigo). Dessa maneira, as roupas demarcam a dualidade que acompanha as discussões raciais.
O texto de Mery Delmond e Rodrigo França põe o dedo na ferida do branco salvador. Pontua muito bem as práticas racistas cotidianas, tão arraigadas que são imperceptíveis… Para os brancos. Estão lá o racismo recreativo, o preconceito contra religiões de matriz africana, citações a Monteiro Lobato, o ativismo de hashtag. E é impressionante como o texto consegue aprofundar em tantas questões sobre o racismo em pouco mais de uma hora. Monsueto é incansável em comunicar a dor do povo preto, assim como Valéria tem a paciência de ensinar diariamente o que é ser preto. A arte nesse momento é a própria vida.
Reinaldo Junior é uma potência em cena. Você sente dor com ele, quer abraçá-lo. O ator realça com seu corpo e alma a solidão de falar e frequentemente não ser ouvido. Alex Nader cresce junto com seu personagem no texto. Talvez recaia sobre ele a tarefa mais difícil, que é a de mascarar o racismo nosso de cada dia, ao mesmo tempo em que o revela. Stella também traz muita verdade como a professora que busca manter seu emprego, enquanto precisa constatar o próprio racismo. Por outro lado, Mery Delmond é aquela que ensina com paixão, que acolhe, ainda que em muitos momentos de sua vida não seja acolhida.
Ao final do espetáculo, temos a sensação de que a estrada é longa para os que lutam contra o racismo. Isso faz da peça essencial, tal qual o livro de Manoel Soares, sobretudo para as pessoas brancas. É uma oportunidade rara para entender o racismo estrutural através da arte. Esperamos por mais temporadas de “Para Meu Amigo Branco” ao redor do Brasil.
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