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Crítica de Teatro

Crítica: Museu Nacional – Todas as Vozes do Fogo

Museu Nacional
Imagem: Divulgação/Cia Barca dos Corações Partidos

Na noite do dia 02 de setembro de 2018, o Brasil assistiu perplexo ao incêndio do Palácio de São Cristóvão, que abrigava grande parte do acervo do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mais que um espaço para exposição de peças, é a mais antiga instituição de pesquisa científica do Brasil, que era a detentora do maior acervo de história natural e antropologia da América Latina. No entanto, o espetáculo supera a história oficial para adentrar na história não contada, a que nos resgata a memória do descaso. Confira a crítica do musical:

Leia também: Espetáculo sobre o Museu Nacional estreia hoje no Rio

Ironicamente, o Museu Nacional completou 200 anos de existência no mesmo ano que foi devastado por um incêndio sem precedentes em sua história. Esse evento foi um prelúdio para o que viria alguns meses depois, com a vitória da extrema direita nas eleições presidenciais. Contudo, o texto e a direção de Vinicius Calderoni resgatam a profundidade do que chamamos de descaso.

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Quem conduz a narrativa é Luzia, personificada de forma brilhante por Ana Carbatti. O fóssil de mais de 11 mil anos, que reescreveu tudo que se conhecia sobre os povos da América Latina, virou o símbolo do que havia de mais precioso naquele acervo. Luzia sobreviveu milagrosamente às chamas. Mas ao mesmo tempo, se perderam registros de línguas indígenas de povos que desapareceram.

Museu Nacional
Imagem: Divulgação/Cia Barca dos Corações Partidos

A narrativa poderia seguir pelo caminho esperado que é o de apenas lamentar os danos e as perdas, e enaltecer os que sempre trabalharam pelo progresso científico. Eles têm o seu lugar no espetáculo, contudo, velozmente o texto avança para a gênese historiográfica do colapso do Museu Nacional. São 200 anos de construção e destruição numa dialética incrível, onde os visíveis avanços alcançados pela instituição também resultaram em dor e apagamento dos pretos e indígenas.

De forma brilhante, texto resgata a memória apagada sobre o Museu Nacional

Na narrativa, o fogo se propagou como uma força ativa da natureza. No entanto, só causa destruição quando não é contido. E nunca foi o interesse do patriarcado e da elite branca conter os vários desastres que acompanharam a edificação do Palácio. Está lá: o genocídio dos indígenas, a mão de obra escravizada, as negociatas e falácias de uma elite mais interessada em privilégio que progresso.

Mas há também espaço para rir da própria desgraça. Os objetos têm sua hora de “Uma Noite no Museu” e um “Oscar da destruição” é entregue, resgatando outros eventos terríveis da humanidade. Há também uma perspectiva interessante de um futuro, onde a branquitude perde o domínio social.

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Museu Nacional
Imagem: Divulgação/Cia Barca dos Corações Partidos

As composições musicais são tocantes e muito bem executadas pelo numeroso elenco composto pela conceituada Cia Barca dos Corações Partidos e atores convidados. Nem mesmo o aparente cansaço e alguns contratempos de final de temporada diminuíram o excelente trabalho de suas atuações. Versáteis, quase não se distingue quem é músico, ator. Ponto para a direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos e os compositores que trabalharam nas músicas. Ainda sobre as atuações, há um rompimento da encenação tradicional: os artistas questionam e olham nos olhos da plateia, recorrendo a afetos e sensações diversas ao longo do espetáculo.

Museu Nacional
Imagem: Divulgação/Cia Barca dos Corações Partidos

No aspecto técnico, as coreografias são demasiadamente simples, o que não contribui muito para a parte musical do espetáculo. A cenografia André Cortez é inteligente ao se concentrar em destacar uma chama. Ela se engrandece e se apaga em momentos distintos, aliada à iluminação competente de Wagner Antônio, que não ousa mas trabalha bem as transições históricas. Os figurinos de Kika Lopes e Rocio Moure dimensionam o avanço e o retrocesso dos personagens dessa tragédia.

Por fim, “Museu Nacional – Todas as Vozes do Fogo” é um resgate à memória silenciada, aos povos apagados e dizimados. É um convite à reflexão sobre o nosso posicionamento diante da barbárie que nos acompanha há 500 anos, orquestrada pela branquitude elitista. Mas é também uma ode ao conhecimento científico que, se democratizado, refletirá de fato em avanços para a sociedade brasileira.

Museu Nacional
Crítica: Museu Nacional – Todas as Vozes do Fogo
Sinopse
Museu Nacional [todas as Vozes do Fogo], com a Barca dos Corações Partidos é um estudo de como um país cultiva, armazena e conserva sua memória – e todas as suas implicações simbólicas e concretas. É um mergulho imaginativo e lírico em múltiplas camadas de passado para pensar de maneira urgente nosso presente imediato e o futuro que estamos construindo. Destruído por um incêndio de grandes proporções em setembro de 2018, ano de seu bicentenário, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, perdeu grande parte do seu impressionante acervo de cerca de 20 milhões de itens. A tragédia – em todo o seu valor real e simbólico –, foi o ponto de partida para a criação do espetáculo inédito, com texto e músicas originais, escrito e dirigido por Vinicius Calderoni, direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos e idealização e direção de produção de Andréa Alves, da Sarau Cultura Brasileira.
Prós
Texto contempla as várias nuances da destruição do Museu, como o racismo, o genocídio dos povos indígenas e o descaso.
O ritmo veloz do texto mantém a plateia atenta
Grande elenco
Belas composições musicais
Contras
A coreografias deixam a desejar
4.8
Nota
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Bibliotecária, doutoranda em História das Ciências, e das Técnicas e Epistemologia. Apaixonada por cinema, séries e cultura em geral. Sem Os Goonies talvez não estivesse por aqui.

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