Se a vida lhe der limões, faça um merengue
Existe um ditado que aconselha: não julgue um livro pela capa. Podemos dizer também, no caso de “Toast – A história de uma criança com fome”, não julgue um filme pelo título. Não se trata de um documentário sobre questões sociais ou nutricionais na infância. É, na verdade, uma adaptação da autobiografia de Nigel Slater, famoso cozinheiro britânico que também escreve sobre culinária e apresenta programas de tv.
Nigel (Oscar Kennedy) é um menino que vive em Wolverhampton com os pais. Sua mãe (Victoria Hamilton) possui uma assombrosa inabilidade para cozinhar e por conta disso, a família apenas consome produtos industrializados, o que deixa Nigel muito frustrado, considerando que sua atividade secreta à noite, debaixo das cobertas, é ler livros de culinária. O título original do filme, “Toast” (torrada, em português), se refere ao que vinha a ser a refeição quando a comida a ser servida, normalmente insossa, se tornava intragável. Apesar da simplicidade, as torradas permaneceram no imaginário de Nigel de forma positiva. O pai (Ken Stott), de temperamento explosivo, é igualmente refratário a qualquer novidade gastronômica e tem um relacionamento difícil com o filho. Talvez já suspeitasse de sua homossexualidade, que percebemos em tintas bastante suaves, através da paixão platônica que o menino nutre pelo belo jardineiro Josh (Matthew McNulty).
Sra. Slater sofre de problemas respiratórios e enquanto seu estado de saúde piora progressivamente, a ameaça de sua morte iminente gera belas cenas entre mãe e filho. Oscar e Victoria tem uma boa conexão e a atriz expressa muito bem a doçura e a fragilidade da personagem.
Com a morte da esposa, Sr. Slater revela ter um lado vulnerável, o que em alguns momentos o aproxima de Nigel, mas o relacionamento entre ambos continua complicado. Aqui cabe destacar a ótima participação de Frasier Huckle (Warrel, o melhor – talvez único – amigo de Nigel) que lhe dá conselhos como “o caminho pelo coração de um homem sempre passa pelo estômago” e que, ao ouvir Nigel dizer que só queria ter uma família normal, lança esta pérola de sabedoria: “Famílias normais são supervalorizadas. Você será interessante quando crescer”.
A contratação de uma faxineira (Helena Bonham Carter) sacode o ambiente da casa. Desbocada, sem cerimônia, extravagante e até mesmo sexy à sua maneira, Sra. Joan Potter desperta olhares gulosos do Sr. Slater e tenta conquistá-lo com pequenos agrados, trabalho esmerado e – adivinhem – também pelo estômago, irritando Nigel profundamente. Warrel estava certo.
A entrada de Helena na trama altera também o ritmo do filme, antes mais lento. Embora ótima desde o começo, a atuação de Oscar Kennedy cresce e fica muito mais destacada quando começam os enfrentamentos entre o órfão e a faxineira.
A apresentação da personagem e das reações desencadeadas por ela no Sr. Slater é realizada através de movimentos de câmera curiosos, ângulos ambíguos e ações físicas triviais, porém sugestivas. Sra. Potter é casada, mas isso não parece fazer diferença para Sr. Slater, que a leva para eventos sociais e se transforma em um novo homem, transbordante de alegria e vitalidade. Chega ao ponto de se mudar com ela e o filho para um lugar isolado, onde Joan (agora praticamente sua mulher e dominando totalmente o lar) faz verdadeiros banquetes que o engordam a olhos vistos.
Nigel adolescente é vivido por Freddie Highmore (o Norman da série Bates Motel), uma ótima escolha, inclusive por seu tipo físico. Na escola, é o único garoto a escolher a aula de economia doméstica – todos os rapazes optam por carpintaria – e passa a cozinhar obsessivamente, trazendo suas iguarias para casa, o que gera um clima de competição entre ele e a madrasta, ainda mais acirrada quando ele decide fazer um merengue de limão, sobremesa preferida de seu pai que Joan sabe preparar com maestria.
Fugindo de todo o pesadelo doméstico, Nigel arruma emprego em um restaurante e a partir daí tudo se desenrola no filme de forma mais rápida. Sentimos que o jovem caminha em direção à sua liberdade, à confirmação de sua sexualidade e à vida adulta. Os acontecimentos que se seguem prometem uma mudança de ventos, e a cena embalada por “Yesterday when I was young” (performance de Dusty Springfield, considerada uma das melhores vozes de todos os tempos pela revista Rolling Stone) pode ter um que de melodramática, mas é certamente empolgante.
Interessante também é a participação do próprio Nigel Slater, contracenando com Freddie Highmore. É como se ele conversasse com seu eu passado. Quantos de nós não gostaríamos que nosso eu futuro aparecesse nos momentos de incerteza da juventude para dizer algo encorajador ou reconfortante? “A história de uma criança com fome” é quase uma Cinderela numa versão “proativa”, em que o órfão que sofre dentro de um lar hostil vai em busca de seu destino por conta própria.
Neuza Rodrigues
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