Em exibição pela 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, “Vadio” de Simão Cayatte nos chamou a atenção em uma casual manhã de quarta, e este é o porquê de que também pode chamar a sua. Confira nossa crítica, sem spoilers, abaixo do longa luso-franco-polaco.
Mensagem
Há aqueles que dizem que após Camões há senão sombras, que nenhum autor luso conseguiu ou conseguirá alcançar a grandeza do autor que narrou e capturou a grandeza (e as contradições) do Império Português das grandes navegações, não por acaso esse é um tema recorrente na cultura lusa: o imaginário de um passado glorioso e um presente de escuridão, bem como a espera de um salvador milagroso (como Dom Sebastião). O que fazer quando não há nenhuma luz pela frente?
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, / Define com perfil e ser / Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer / Brilho sem luz e sem arder, / Como o que o fogo-fátuo encerra. / (…) / Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
“Nevoeiro”, Fernando Pessoa, em “Mensagem” (1934)
“Vadio” é herdeiro dessa imagética e acompanha a vida de André (Rúben Simões), abandonado pelo pai e que se recusa a viver em um abrigo para menores. Ao longo do filme, André descobre que as coisas que envolvem seu genitor não são o que parecem, enquanto ele tenta sobreviver sem saber cozinhar, cuidar de si ou da casa, na rural região portuguesa de Alentejo, em plena crise econômica do início da década passada.
Os caminhos do rapaz se cruzam com os de Sandra (Joana Santos), uma mulher de meia-idade que está morando em uma casa vizinha a sua, não sabendo nada a respeito um do outro. Mesmo a contragosto, declarando várias vezes não querer se meter nessa encrenca — incentivando o garoto a procurar pela polícia — ela o ajuda na busca por seu pai e ambos são cúmplices no aperto financeiro.
Não há uma moral da história, nem uma resposta ou crítica bem definida que atravesse o filme de modo didático — como optam algumas produções — “Vadio” escolhe não subestimar a inteligência do espectador ao retratar as violências sutis como elas são, sem cair no clichê de “violence porn” e acreditar que “porque a obra trata de temas densos e os explora cruamente, ela é boa”, pelo contrário: a empatia é construída aos poucos com uma lenha (“slow burn“) que queima sem um clímax de choque, mas que encaixa as peças que vão sendo dadas ao longo dos 91 minutos.
Cada coisa na paisagem, composição e até falas do filme contribui para essa semiótica da terra arrasada: as falas à “Vidas Secas” de André, as notícias de jornal que podem ser escutadas ao fundo, as cores quentes e opacas, a vitória do moralismo carola, a falha da assistência aos necessitados.
A opção por cenas, por vezes mais longas, filmadas à mão pode ter se tornado um lugar comum no cinema (alô, Godard) com pretensões mais naturalistas — ou melhor colocando, aqui realistas — mas as escolhas de Simão Cayatte não estão desplaçadas da sua narrativa, simplesmente oferecendo um ar de presunção e comentário social raso sobre a violência, sim acenando para o desenho de um desespero primitivo, mas moderno, do qual temos dificuldade de enunciar.
As costas frágeis e suadas, o voyeurismo ao materno, a inaptidão para tarefas simples, entre tantos outros. “Mostre, não diga” é uma lição importante para criadores, e “Vadio” segue muito bem esse aspecto da cartilha.
Há duas coisas a pesar a seu desfavor: em primeiro lugar, o estreante Rúben Simões não está de longe mal, porém falta energia que pode decorrer de sua inexperiência nas telonas — haveria de se argumentar, contudo, que sua expressão blasé, mesmo na última sequência, seria uma emulação à Graciliano Ramos, e isso funciona em alguma medida até a segunda página.
O outro demérito está na amarração das cenas finais. O filme faz um excelente trabalho em costurar as coisas de forma lenta e contemplativa para, ao fim, fazê-lo tão apressadamente. Não é que a relação entre André e Sandra não estivesse pintada bem àquele ponto, todavia a forma como este foi colocado quase que gera um tilintar de quebra da suspensão da descrença nessa paisagem naturalista — é como um gozo de Macabéa em “A hora da estrela“, mas não num bom sentido.
No saldo final, “Vadio” é um longa muito competente e que vale a pena assistir tanto pelo fator histórico, quanto pela beleza da arte pela arte; um lembrete, porém, de que, pelas palavras do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, de certa forma todos nós vivemos sob o mesmo país.
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