A atriz Karen Menatti, da Cia do Tijolo, conversa com a gente sobre sua interpretação de “Irene” no espetáculo “Guará Vermelha”, que adapta o livro “O voo da guará vermelha” da autora Maria Valéria. Karen, formada em Artes Cênicas e Filosofia, comenta como essas áreas se encontram e se misturam na construção de sua personagem, além da importância que a relação com o tempo possui no espetáculo e na vida.
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Arthur Macedo: Você é formada em Artes Cênicas e Filosofia. Como é esse jogo entre essas duas áreas pra você?
Karen Menatti: Uau! Não sei, acho que ninguém nunca me perguntou isso! (ri) Eu acho que, se a gente pensar de uma certa maneira, no teatro a gente está interessado no outro, nas histórias. A gente fica ali cavoucando, pelo menos o jeito em que a gente trabalha no [Cia do] Tijolo, é uma cavoucação sem fim para chegar em algum lugar e que nunca é um “chegar”, nunca tem um espetáculo pronto, a gente vai sempre se perguntando. Para mim, a Filosofia tem muito esse lugar: é pergunta atrás de pergunta, espanto atrás de espanto, questionamento atrás de questionamento. Eu sempre fui uma leitora muito apaixonada, lia muito desde pequena, então, eu acho que a Filosofia entra muito nesse lugar de uma tentativa de entender o viver, viver é uma loucura insana. E acho que para o teatro, a Filosofia ajuda, pelo menos a mim, a abrir essa caixinha de perguntas sempre e não fechar em nada.
A.M.: Quando você vai pensar na construção das suas personagens, recentemente “Irene”, como que existe uma tradução desses dois universos que você transita para a construção da sua personagem?
K.M.: Para a Irene, acho que foram muitas coisas que entraram. Primeiro, a própria história, que é muito fora da curva do que se espera dessa sociedade: é um pedreiro e uma prostituta, não existe julgamento entre eles, existe um olhar para o outro como sujeito e sujeita dessa história e eles vão se entendendo, se construindo e se contornando um através do outro. Acho que existe uma urgência, pelo menos da parte da Irene, por conta de uma doença que ela está enfrentando, então me parece que não existe muito espaço para divagações metafóricas ou metafísicas, voltando para a coisa da Filosofia. A Irene é uma figura que tinha esse sonho de estudar, de ser professora na verdade, ela estuda pouco, lê, mas há muito tempo que ela não pega em um livro, imagino que pela contingência da vida, e a presença do Rosálio faz com que isso floresça nela. Você imagina, em um momento em que a gente é sempre instigado a realizar as coisas por si próprio, você ter uma história em que um realiza o sonho do outro? Isso é muito lindo e é muito para além de um romance, fala de um amor no sentido do “amor das gentes”, do amor pela vida, o respeito pela outra figura que olha no olho. É impossível conseguir transcrever toda a maravilhosidade que a Maria Valéria coloca ali. Mas ela tem alguns trechos no livro, que em alguns momentos na peça a gente fala, que ela [a Irene] decide começar a escrever, a partir das histórias que ele conta, ela vai escrevendo as histórias que ele conta. Isso, para mim, tem uma coisa de um registro de alguém que é invisibilizada pra sociedade o tempo inteiro, ela conseguir deixar algo a partir das histórias que ela ouve e das histórias dela, que ela vai colocando naquele papel. Isso, para mim, é de uma transcendência quase na função social. Não dá para falar que o livro dá conta de tudo, mas ele faz muita coisa.
A.M.: A Irene te toca a partir de qual lugar?
K.M.: Essa possibilidade de olhar para a vida dela, como alguém que nunca ninguém olhou, a partir de alguém que olha para ela, ela se enxerga alguém e ela decide escrever e colocar isso no mundo. É o ato de se sentir sujeito dentro da própria história, entendendo a sua história conforme vai vivendo a sua história. Isso me encantou muito. E aí os dois [Rosálio e Irene], e nela também, não tem esse julgamento pela outra pessoa. Pra mim, eu vejo como uma boia em que você olha e vê um farol e fala: “Nossa, tem uma luz ali que é essa luz que eu preciso para andar esse resto de vida”. Isso, para mim, nessa figura [Irene] é muito comovente. E ela exerce seu sonho com ele [de ser professora].
A.M.: Eu acho que as particularidades dela e as dele se encontram, se encaixam. Como que foi pra você estar lendo o livro e chegar no instante final?
K.M.: O que é esse livro, meu Deus!? (ri) É uma coisa impressionante e a Maria Valéria é muito astuta. Ela fala o tempo inteiro que ela [a Irene] está doente, o livro se passa nos anos oitenta ou noventa, então a questão do HIV ainda não tinha cura, e ela vai dando essas pistas das manchas roxas no corpo da Irene e você vai entendendo que o que vai mata-la é justamente isso. O último capítulo, que é o “Azul sem fim”, eu tive que ler, voltar, ler de novo, voltar e falar: “Não, peraí”. Ela [Maria Valéria] é de uma astúcia no modo da escrita dela, que ela tem dois ou três indicativos de palavras, de palavra concreta mesmo, em que você entende o que está acontecendo. Ela vai e volta e no livro inteiro a narrativa se confunde com as falas das personagens. É o inusitado, o inesperado, não existe uma construção no livro em que você espera que vá chegar essa hora, é algo do inusitado.
A.M.: Tem uma frase da peça que eu gostei muito, que é “Aqui você tem tempo”. Vocês trabalham, o que algo da estética da Cia do Tijolo, é algo específico que trabalha na construção material de vocês, mas também conversa muito com a proposta da peça em si. Como você enxerga essa relação do “Aqui você tem tempo” com a Irene?
K.M.: Isso chegou por várias frentes, essa questão do tempo. Uma delas foi a questão da Irene, porque ela não tem tempo. Tudo o que você vai entendendo da trajetória dela é que o tempo dela está ficando cada vez mais rareado. A Irene tem essa urgência porque é uma urgência da ordem da vida, mas a gente também fala na peça da “urgência da não-urgência”. “Aqui você tem tempo”, o que seria esse tempo? “Se você tivesse tempo”, a gente já pressupõe que a gente não tem.
A.M: Como essa pergunta te toca?
K.M.: Ela é salvadora, eu acho. Isso passou um pouco no meu eu, não posso ignorar que isso passou muito pelo meu corpo, porque eu tive um câncer em 2018 e eu ainda estou em acompanhamento até julho de 2024. Então eu faço muitos exames periódicos, e não consigo desassociar o fato de você receber uma notícia de que você tem uma doença grave e que ela tem tratamento, à diferença da Irene da época que não tinha, hoje tem, mas é algo muito grave que poderia não ter, dependendo do estado em que eu estivesse ou do momento.
A.M.: Eu acho que ela [a Irene] não está desesperada, acho que é muito bonito nela: ela já aceitou com glórias que vai morrer e mesmo assim quer aproveitar cada instante.
K.M.: Porque tem esse encontro que é uma potência de vida.
A.M.: Qual mensagem você acha que a peça em si deveria transferir para o público?
K.M.: Eu acho o “tempo”, que é uma coisa para a gente sair pensando, porque faz a gente pensar. Tem uma pergunta aqui no começo da peça, a gente canta: “Dona Maria Valéria me escuta / Só por um segundo / As coisas que a gente põe no papel / Será que modificam o mundo?”. Será que modificam mesmo? Isso é uma coisa que a gente também se pergunta. A “relação” [sobre amor] é uma pergunta. O que faz algo ser realmente bonito de se viver?
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