Com o lançamento de seu mais recente livro “Cura Pelas Palavras”, Rupi Kaur volta aos holofotes. A escritora que em 2014 bombardeou o mundo com seus textos é um desses curiosos casos de ame ou odeie, mas será que a crítica não lhe tem pesado a mão?
Efeito Eliza
O ano é 1966, um pesquisador do MIT desenvolve ELIZA, um software marco na inteligência artificial, com a proposta de servir como um terapeuta rogeriano virtual. Apesar do avanço para a época, o programa não era capaz senão de responder circularmente de acordo com a última resposta do usuário. O incrível disso? Os pacientes, satisfeitos, que pediam por mais consultas.
Décadas mais tarde, o mundo literário está em polvorosa com a publicação de “Milk and Honey”, da autora indiana Rupi Kaur. Com um estilo simples, frases de impacto e ilustrações confortáveis, a poetisa quebrou a bolha do mainstream e chegou até a receber o título de “Poeta da Década”, figurando em várias listas de recomendações de tabloides famosos.
O que é que poderia estar por detrás dos versos de Kaur?
É você que ama o passado e que não vê?
A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.
Antônio Cândido em “Direitos Humanos e Literatura”.
O que faz uma obra literária boa? É possivel objetivamente constatar o valor de algo a princípio subjetivo? A crítica literária está desde tempos imemoriais entre nós, por vezes engajando no milenar Tribunal de Minúsculas Causas — como Platão discutindo quem é o parceiro “dominante”, entre os guerreiros Aquiles e Pátroclo (Plat. Sym. 180) — mas igualmente ousando adentrar tarefas espinhosas, como discutir o que é boa literatura.
Embora a questão seja de todo interessante, não seria possível explorá-la ao fundo, senão por um brevíssimo panorama. Na própria história da literatura é possível constatar a resistência de conservadores: Gustave Flaubert foi acusado de ofender a moral e religião com Madame Bovary; “Os sapos” de Manuel Bandeira foi vaiado na Semana de Arte Moderna; Drummond foi achincalhado pela crítica por escrever o poema “No meio do caminho”, bem como por seu estilo.
“O sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio.”
Gondin da Fonseca no Correio da Manhã, 1938.
Que tal Carolina Maria de Jesus? Tal como anteriormente ocorreu com o itabirano, hoje não é incomum que, quando se encontrem referências a ela em livros didáticos, sejam em exercícios para “correção gramatical”. O novo sempre vem, mesmo que encontre resistências. O que falar de Rupi Kaur? Por que a poetisa — que encabeça todo um movimento de “poetas de instagram” — é tão criticada? É hora de viajarmos para 2014.
O estilo de Kaur
Quando Rupi publicou em 2014 seu primeiro livro, “Milk and Honey” (“Outros Jeitos de Usar a Boca”, no Brasil), foi um evento — não se falava em outra coisa, e muitos vieram atrás: Amanda Lovelace e R.H. Sin, para citar alguns. Seu estilo causava impacto e inspirava curiosidade, alastrando-se entre seguidores e aqueles que queriam checar se era “tudo isso mesmo”.
Seu começo remonta a um pouco antes, ao Tumblr. É nas redes sociais que Rupi nasceu e explodiu, e isso não é por caso. Antes de prosseguir, não seria possível falar de seu trabalho senão o apresentando, apesar de ser difícil nunca ter esbarrado com seus versos pela internet.
how can I be so
cruel to myself
when i’m doing the best i can
Rupi Kaur, “be gentle”, Home Body (2020), página 34.
Uma das principais críticas a seu modo de escrita é a “facilidade” de replicação. Embora isso não seja essencialmente um problema, quando colocado lado a lado a um de seus adeptos, é difícil identificar a autoria: não há uma marca autêntica, crítica profunda ou metáforas inteligentes. Rupi brinca com o simples; palavras simples, ideias simples, consumo imediato.
Kaur já disse em dada oportunidade que seu contexto como mulher imigrante, sikh, da classe trabalhadora, não permitiria que ela fosse publicada não fossem as redes sociais. Será mesmo? Rupi emerge em um contexto muito importante de debate de pautas sociais, e bem sabemos que não é fácil, principalmente sem contatos e escrevendo aquilo que não é palatável para o público, alcançar esse status igualável a uma pop star.
Justamente pelo seu contexto, Kaur é o avatar que o mercado pedia: uma voz das minorias que amalgamasse diferentes pautas, mas que fosse domada pela própria mediocridade; suas palavras são fáceis de se relacionar, é a poesia de autoajuda que diz muito porque pode dizer qualquer coisa, pronta para ser consumida em dez segundos e não proporcionar qualquer mudança significativa de perspectiva.
it feels like i’m watching my life happen through
a fuzzy television screen. i feel far away from this
Rupi Kaur, página 20 de “Home Body” (2020).
world. almost foreign in this body. as if every happy
memory has been wiped clean from the bowl of my
mind. i close my eyes and i can’t remember what
happy feels like. my chest collapses into my stomach
knowing that i have to get up in the morning and
pretend i’m not fading away all over again. i want
to reach out and touch things. i want to feel them
touch me back. i want to live. i want the vitality of
my life back.
Quando não textos corridos com quebra de linha apenas pela “estética” de poema, ainda é possível ver o estilo de instapoetry pelas ilustrações suaves e simples, o uso exclusivo de minúsculas e o apelo a alguma pauta social que se proponha tocar apenas pela superfície. Nada disso colabora para trazer alguma vida para sua poesia, no lugar, o que se tem é o grotesco erro de crer que a qualidade literária é proporcional à relevância de seu objeto de texto.
“Vidas Secas” não é bom porque fala de fome, miséria, desigualdade e exploração de classe, mas a forma como Graciliano Ramos conduz isso, sobretudo atrelada a um estilo que também é metalinguístico, é que o torna um clássico da literatura.
As palavras de Kaur são tão genéricas quanto associar seda à leveza, fogo à paixão, e sem propor qualquer inovação (exemplos tirados da própria). Metáforas desgastadas, facilmente reconhecíveis, que acariciam o ego e dizem que ficará tudo bem (não por acaso o título da última seção de seu primeiro livro é “Cura”).
Que não se perca de vista: incontáveis são aqueles que tentam e não conseguem acessar o mercado literário (serem publicados), seja por sua origem (classe, etnia, gênero, falta de contatos, etc.), como pelo conteúdo — que não se adequa às expectativas daquilo que tende a dar lucro. Falar de Rupi Kaur é passar por cima de tudo isso, pois suas experiências comodificadas, a tal “representatividade”, tampouco nos conta algo sobre sua origem; é programada para ser o mais genérica e de fácil identificação possível.
O leitor não irá ler um poema e depois de uma semana, ao relê-lo (ou dele recordar), descobrir algo novo, simplesmente porque o sentido está dado, uma pílula para se inspirar com uma frase feita e então retornar ao rolar do feed. É poesia para quem não tem o hábito de ler, não quer ser provocado e, ao contrário, deseja ser reafirmado. É o apelo máximo ao imediatismo.
Em contraponto: isso quer dizer que um artista é menor que outro porque não emprega vocabulário rebuscado, gramática truncada e que vai ser apenas entendida em um “seleto círculo” de pessoas? Não, e não faltam exemplos. Ainda na literatura em língua inglesa, Hemingway consegue o feito de escrever apenas usando as palavras mais simples de seu idioma. Já para o Brasil, que tal citar este outro querido de todo professor de literatura?
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabidoMas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Oswald de Andrade, “Pronominais”, Pau-Brasil (1925).
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
De igual modo, obras que não são eruditas não devem ser menosprezadas (e a elas a mesma crítica se estenda) — “Vermelho, Branco e Sangue Azul” é divertido, cumpre aquilo para que se propõe, e está bem. E lá há algum crime em aproveitar um romance água com açúcar, por exemplo?
Poesia do fim do mundo
Rupi Kaur é um Midas invertido: banaliza tudo em que toca: violência de gênero, sexualidade, racismo, doenças mentais — tudo enquanto reforça o status quo.
Veja bem: isso não deve ser lido como um ataque pessoal à Rupi Kaur, suas vivências e a boa intenção na militância, e infelizmente esse pensamento reativo é um sinal de esvaziamento de pauta. “Milk and Honey” pode não ter criado a banalização de pautas sociais, ou inventado a lógica de consumo instantâneo e não crítico, mas é um sintoma mórbido do capitalismo tardio.
Contudo, justamente por esse esvaziamento que se tem algo perigoso. Resume-se a luta a um consumível instantâneo, um produto. Não se elabora nada a partir daí e, pior, perde-se força ao que tudo se torna passível de ser cooptado, virar espetáculo; desmobiliza-se em um discurso líquido, que será esquecido assim que se rolar para o próximo post do feed.
when i’m trapped inside
Rupi Kaur, Sem título, via Instagram.
the darkest corridors of my mind
i try to remember
other people feel this too
Qual é a razão para que haja quebra de linha após “inside” ou “remember”? Corredores escuros é de fato uma metáfora inovadora? Ou quem sabe a autora faz algo para subverter isso? Na segunda metade, dois versos de afirmação: você não está só, você é válido, você importa (…). Talvez tenhamos encontrado uma fórmula.
A desconstrução do lírico atinge o seu grande ápice: por excessivas vezes não há poesia de fato, não há imagens, não há recriação do mundo. Não se trata de simples opinião: objetivamente, não são poucas as vezes em que Kaur escreve trechos que não possuem expressão lírica, são trechos corridos, mas não poesia — isso não é um crime, mas, propondo-se a fazer poesia, falha, e, quando tem efetivamente valor lírico, são (quando muito) medianos.
Reforcemos: isso quer dizer que está proibido gostar e compartilhar sua poesia (ou escritos)? Não. Quer dizer que Rupi Kaur não é arte? Jamais — o que, porém, não lhe confere mais profundidade do que os textos gerados pela ELIZA; visto que até eles são capazes de gerar identificação.
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