A peça Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus, encenada pelo grupo O Bonde, esteve em cartaz no SESC Consolação entre 15/04 e 03/06. É a primeira peça infanto-juvenil do grupo e não há como negar que foi uma belíssima estreia. A obra apresenta a história de Abou, um garoto refugiado de oito anos que é encontrado em uma mala de viagem na Europa. Apesar de ser um tema denso – a questão dos refugiados – o trabalho do grupo foi esplêndido ao desenvolvê-lo a partir do ponto de vista de uma criança.
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O elenco, formado pelos atores Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves, revezam na interpretação do personagem Abou, que mantém o espírito infantil, sonhador e inocente independentemente do corpo que o torne vivo. Esse é um dos aspectos mais interessantes da peça, pois tal encarnação alternante demonstra uma profunda captação do personagem e uma sincronia do grupo. Embora em cartaz há cerca de um mês, o que poderia tornar o texto e a encenação algo automático, é muito perceptível a conexão entre os atores e, mais do que isso, o prazer de cada um no trabalho desenvolvido. Não há como destacar alguma atuação: todas são muito boas.
Além de Abou, alguns outros personagens são vividos no palco, mas por meio de bonecos, que tinham suas vozes e movimentos emprestados dos atores. A cachorra do personagem, uma mala chamada Ilê, demonstra o poder da imaginação, que é o eixo estruturante da peça. Afinal, no contexto de pobreza que o personagem principal vivia, apenas a imaginação de uma criança seria capaz de disfarçar o contraste miserável que crianças nessas condições experimentam, isto é, a desigualdade mundial de renda.
Embora a peça tenha uma presença majoritária do mundo infantil, as pinceladas do mundo adulto aparecem através das notícias do rádio velho que Abou possui. Através do aparelho, ouvimos diversos relatos, baseados em casos reais, que acompanham a vida de grupos refugiados, além da própria trajetória de Abou, tendo em vista que a peça é baseada em um caso real. Dessa forma, o jogo entre imaginação e realidade atenua e denuncia a condição desses grupos.
A peça conta com o belíssimo trabalho cenográfico de Eliseu Weide, que também assinou a cenografia de Cárcere ou Porque as Mulheres viram Búfalos e a de Jogos de Imaginar, peças que já foram avaliadas pela nossa crítica. Em “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus”, Eliseu compõe o cenário com malas coloridas e pintadas, que são espalhadas de forma estratégica no palco. Assim, elas são bonitas, infantis e também funcionais em algumas cenas. É importante mencionar que ele contou com a assistência de Carolina Emídio e Iasmin Ianovale.
Como dito anteriormente, a temática dos refugiados é trabalhada de maneira sensível, porque parte do ponto de vista de uma criança. Assim, acompanhamos Abou brincando, sonhando e dando vida à sua mala Ilê, por meio da imaginação, ao mesmo tempo que vemos sua trajetória do mundo de sua casa até sua entrada na mala e travessia para a Europa. O texto de Maria Shu, nos momentos de tensão, como quando a mala é revistada pela polícia, é tão leve, que conseguiu denunciar a situação de uma maneira tragável para o público. Acredito que o único deslize de roteiro seja a inserção da denúncia de casos famosos de morte de crianças no Brasil, que embora a temática da peça estabelecesse uma analogia possível, o roteiro não criou o contexto para tal, o que tornou esse momento um ponto fora da curva do que se estava sendo proposto.
Por fim, a história possui os elementos expostos muito bem amarrados e é esteticamente agradável de ser assistida. A peça atende o objetivo de sensibilizar o público para a questão dos refugiados e revela a habilidade artística do grupo O Bonde em abordar um tema relevante e complexo em sua primeira peça infanto-juvenil. As músicas e danças são bonitas e ressaltam a sincronia dos atores. Em diversos momentos, esqueci, inclusive, que sou adulto, e senti minha criança interior assistindo à peça com certo encantamento.
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