Grande parte das séries mais comentadas atualmente são desenvolvidas ou produzidas pela Netflix. E mesmo que muitas delas tenham produções incríveis e histórias ótimas há vida além dessas obras. E estamos perdendo toda a diversão e a reflexão.
A produção do portal de streaming canadense Hulu não está na Netflix (elas são plataformas concorrentes, então provavelmente não estará lá por algum tempo) e, por isso, não ganhou tanta projeção no Brasil, mas deveria. Em português livre, “O Conto da Aia” fala sobre uma distopia em um futuro não tão distante e é narrado por “Offred”, a Aia protagonista.
De fato, nós não sabemos o nome verdadeiro da personagem. Tudo sobre quem ela é de verdade foi proibido pelo governo totalitário que tomou conta do antigo Estados Unidos. Sim, você pode pensar que talvez tenha visto isso antes, então por que deveríamos falar sobre “The Handmaid’s Tale”?
A resposta é simples e realista: porque não estamos falando de algo distante, algumas pessoas atualmente (inclusive pessoas importantes como presidentes, reis e primeiros ministros) já emitiram opiniões parecidas com o que se fala na série. E também diferentemente de grandes produções cinematográficas, o seriado não utiliza de um grande evento climático que imitaria o Big Bang e eliminaria boa parte da população terrestre. É sobre a resposta a um ato de terrorismo. E isso deveria colocar qualquer pessoa em estado de alerta.
Então, em suma, não se fala sobre a série o suficiente porque ela causa um incômodo que vai muito além do que qualquer outro serviço de streaming foi capaz de mostrar em suas obras até agora. Não que eles não tenham feito boas produções, corajosas até mesmo, mas elas ainda estão anos luz do que as Aias deste conto têm a dizer.
Offred e todas as outras Aias têm histórias importantes. Elas são mulheres que perderam sua identidade e têm como única função servir de encubadora humana, já que nessa época a maior parte dos homens e mulheres perderam a capacidade de gerar filhos. É grave não sabermos os nomes delas: isso apaga quem elas realmente são. No livro (a série é baseada em um livro da década de 80), nós não temos certeza do nome de Offred, pois é apenas citado, mas no seriado fica claro que ela se chama June. É assim que eles apagam e reinventam quem ela é de verdade: dissipando qualquer indício de quem ela foi quando vivia em uma democracia.
Ainda que a história mais importante e interessante seja a de Offred, no meio das personagens, conhecemos Ofglen e vemos sua luta e sua perda. Com um governo que usa do nome de Deus para justificar seus atos, pode parecer que está lutando da forma errada, mas a verdade é que sua revolta é muito mais pungente. A personagem luta e sofre em dobro. Algumas cenas com ela são tão duras e dolorosas que em certos momentos podem até mesmo arrancar lágrimas do telespectador mais forte.
Ainda que ela não apareça em todos episódios, Ofglen pode ser a grande surpresa da série. Com a narrativa em primeira pessoa de Offred, não se sabe quem é esta outra Aia, não até que ela se revela para a protagonista. Quando isso acontece, vemos exatamente como seria tratada uma minoria que já não tem quase nenhum respeito na democracia de hoje: a dos LGBTQ. Se hoje se encontra muita gente que adoraria queimá-los em praça pública, nessa distopia reproduzida pela Hulu esse desejo não seria nem proibido nem criminalizado. Através desta personagem, temos um indício breve e aterrorizante de como seria uma minoria dentro de outra minoria sem respeito ou utilidade nenhuma na sociedade.
O elenco foi escolhido a dedo. Não poderia ter uma opção melhor para viver Offred que Elizabeth Moss. Ela te captura na primeira cena, fazendo com que quem a veja já sinta empatia instantânea pela personagem e isso é realmente importante, principalmente porque toda a história é a partir de seu ponto de vista. Alexis Bledel, provavelmente, é a grande surpresa de toda a produção. A atriz não é um rosto desconhecido em séries, tendo inclusive já protagonizado uma obra (“Gilmore Girls”). Porém, Bledel parecia ser bastante limitada, apesar de já ter participado de projetos corajosos como “Violet & Daisy”, ao lado de Saiorse Ronan. Sua atuação como Ofglen é entregada e corajosa, tornando-se um dos pontos altos da produção. De uma forma geral, todos os atores merecem elogios por suas performances, ainda que não estejam citados.
Uma informação crucial sobre “The Handmaid’s Tale”: A Hulu, emissora original, não está disponível para o público no Brasil. E, apesar de todo sucesso lá fora, não há previsão de quando a produção irá estrear no país. Por isso, se torna tão difícil e não falamos o bastante sobre a série. Mas, este é, na verdade, o motivo pelo qual você deveria assistir: porque tem alguém que não tem interesse que as pessoas vejam e se sintam empoderadas ou questionadoras. E talvez a obra faça isso.
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