Infelizmente, a violência faz parte da vida cotidiana do brasileiro, especialmente daqueles que vivem nos grandes centros urbanos. Na série documental “Relatos do Front – A Outra Face do Cartão-Postal“, a dinâmica da violência nos é apresentada a partir de depoimentos que representam diferentes pontos de vista. Além disso, o histórico da violência no país é situado historicamente, desde a colonização.
A Woo! Magazine entrevistou o diretor Renato Martins para conhecermos mais detalhes sobre o contexto em que a série documental está inserida.
Amanda Moura: Como surgiu a necessidade de lançar a sequência do longa de 2018 como uma série?
Renato Martins: Durante as filmagens para o longa, fizemos entrevistas longas com mais de 20 pessoas que convidamos para participar do filme. Em um longa-metragem, que tem em média 80 minutos, fica impossível contemplar todas essas falas e, durante o processo de edição, percebemos que pensamentos muito importantes sobre segurança pública iam ter que ficar de fora do filme.
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Por isso pensamos em fazer a continuação em uma série, onde poderíamos trazer mais camadas para a reflexão de um tema tão complexo que é a segurança pública, usando essas falas que ficaram de fora do filme e fazendo novas entrevistas para atualizar o assunto. Encontramos e trouxemos novos personagens para a série que, através dos seus relatos, nos contaram suas histórias de vida, e nos ajudaram a atualizar e a amarrar os roteiros dos episódios. Não repartimos o filme original em 4 partes e aumentamos um pouco cada uma delas, fizemos quatro novos filmes de 52 minutos.
A. M.: Como foi a escolha de Dira Paes para narrar a série?
R. M.: Sou grande admirador do trabalho da Dira Paes como atriz e defensora das causas que envolvem os direitos humanos. Sempre quis trabalhar com ela. Quando comecei a pensar sobre quem poderia fazer essa narração em off, me veio à cabeça que essa voz deveria ser feminina. Conversei com o Canal Brasil, nosso parceiro e coprodutor da série sobre essa ideia, e eles concordaram com o perfil. Levantei o nome da Dira e eles toparam de imediato. Fiz um contato com ela, expliquei o projeto e fiz o convite. Tivemos a grande felicidade dela aceitar e uma sorte imensa de ter a voz dela costurando todos os episódios da série, pois na minha opinião, a Dira representa muito a força da mulher brasileira. Uma voz feminina potente e que representa as mães.
A. M.: No primeiro episódio, a dinâmica da violência no Rio de Janeiro segue uma perspectiva história, desde a colônia. Você acredita que conhecer as origens do problema seria um bom ponto de partida para mudar a forma como lidamos com a violência cotidiana?
R. M.: Acho fundamental conhecermos a história dos nossos antepassados e do Brasil por outros ângulos que muitas vezes não são ensinados nas escolas, nos livros, nos museus e nas conversas familiares. Estamos acostumados a ouvir a história do Brasil pelo ponto de vista do colonizador, uma visão eurocêntrica, de quem invadiu essas terras indígenas e conquistou o território na base da violência e genocídio do povo local.
Os portugueses invasores, alguns séculos depois, trouxeram para o Brasil milhares de pessoas negras escravizadas vindas da África e seguiram o projeto de colônia de exploração pré-definido pela coroa portuguesa, usando esses corpos para trabalho forçado e não remunerado nas fazendas de produção de matéria-prima para enviar à metrópole. O Brasil sempre foi um dos países mais violentos do mundo contra a sua própria população e continua sendo.
Enquanto não fizermos os reparos históricos com os povos originais e a população negra, não teremos um país com qualidade de vida para toda a população brasileira. Seguiremos sendo esse país de exploração, que não dá valor para a vida ou bem estar do seu povo, e ainda vive da mesma crença do passado que explorar apenas nossas comodities ao invés de investir em tecnologia de ponta e desenvolvimento sustentável, podem construir algum futuro e criar uma identidade de nação em nossa população.
A. M.: Como foi entrevistar tantas pessoas de segmentos tão diferentes da sociedade?
R. M.: O que considero mais importante foi dar voz para pessoas que muitas vezes não são ouvidas, que não têm espaço ou lugar de fala nos veículos de mídia. E, ao juntar essas vozes com vários outros segmentos da sociedade que costumam falar sobre segurança pública de uma forma mais acadêmica ou jornalística, conseguimos criar impactantes reflexões sobre a segurança pública no Brasil.
Na série, usamos o mesmo processo que havíamos feito no filme, deixando todos falarem sobre suas histórias com mais calma do que acontece normalmente em uma matéria jornalística, que precisa ser exibida em algum veículo de comunicação imediatamente. Procuro sempre ouvir pontos de vista diferentes para podermos trazer um equilíbrio sobre o tema abordado. Na origem do projeto já temos o meu ponto de vista como cineasta e cidadão preocupado com a segurança pública da cidade e do país onde moro e do policial civil que divide o argumento do projeto comigo e que esteve durante mais de 30 anos no front, Sergio Barata.
Como diretor, tentei buscar essa diversidade de pensamentos e realidades em um país tão desigual que é o Brasil, e em uma cidade partida como a do Rio de Janeiro, para criar esse mosaico de relatos sobre as tragédias diárias ainda vividas por grande parte da população.
A. M.: O primeiro episódio tem o sugestivo nome de “O Brasil que Deu Certo”. Ele deu certo para quem?
R. M.: Olhando pelo ponto de vista do colonizador, dos escravocratas e de quem ganha muito dinheiro com o modelo atual de violência que vivemos, podemos dizer que o Brasil é um tremendo sucesso. Ele vem dando muito certo para essas pessoas, que mantém nosso país subdesenvolvido e extremamente violento. Claro que para a população que acorda cedo para trabalhar, recebe um salário mínimo que serve apenas para pagar as contas e comer com dificuldades, esse país é um fracasso absoluto. De certa forma, esse sucesso ou fracasso depende de que lado da balança você está.
E essa é a reflexão que a gente propõe na série. Como nos disse o escritor e historiador Luiz Antônio Simas, precisamos inverter a ideia que o Brasil tinha tudo para dar certo e ser um país do futuro e entender que o Brasil deu muito certo. Pois o projeto pensado para esse território ainda enquanto colônia de exploração, segue funcionando até hoje. A violência no Brasil sempre foi usada para impor o medo e manter a dominação de classes. Deixar a população em constante medo e paranoia é um projeto que rende muitos votos para determinados grupos políticos que se perpetuam nos poderes constituídos desde a proclamação da nossa república.
Não educar a população. Não dar saúde gratuita de qualidade. Não dar moradia. Não dar transporte de qualidade. Não incentivar a cultura e arte. Não criar políticas públicas para melhorar a vida da população e nivelar a base da sociedade em uma classe média, é um projeto pensado e executado com sucesso nesse país desde a sua origem. Será que não já passou da hora desse projeto dar errado?
A. M.: Ainda sobre o primeiro episódio, um dos momentos mais sensíveis é o depoimento de um ex-miliciano. A milícia é hoje um problema ainda maior que o tráfico de drogas?
R. M.: A milícia é um dos maiores problemas no Brasil e no mundo, pois quando você legitima grupos armados e organizados para controlar os territórios e a população em determinadas áreas, você uma hora ou outra irá ficar refém desse poder. O Estado não deveria permitir, e tão pouco se aliar, às milícias. A função do estado é combatê-las para ter o monopólio exclusivo da força armada e assim prover a segurança de toda a população com uma boa gestão de política pública. Já o tráfico de drogas, ele é um grande problema no Brasil porque é proibido e está escrito no código penal como crime.
Os grandes traficantes de drogas do Brasil não moram nas favelas, eles usam terno, roupas de grife, tem passaporte, falam idiomas e usam helicópteros e aviões particulares. As apreensões que a polícia federal faz corriqueiramente e a mídia noticia, deixa isso bem claro. O narcotraficante e o miliciano disputam territórios abandonados pelo Estado, normalmente são as favelas e periferias, para lucrar com a venda ou aluguel de serviços clandestinos. Além desses serviços, eles fazem a venda no varejo das drogas em bocas de fumo espalhadas em vários pontos da cidade. Esses grupos criminosos sabem usar dessa brecha que o estado fornece, da criminalização das drogas, para comercializar cocaína e maconha, seja para o rico, classe média ou pobre, e lucrar centenas de milhares de dólares com essa operação.
Para manter esse negócio trilionário de pé, eles compram armas de guerra para enfrentar os inimigos que querem tomar o seu território, ou combater as forças de segurança do estado que entram nesses locais para cumprir mandados de prisão das lideranças desses grupos. E isso causa uma disputa quase que diária aqui no Rio de Janeiro, onde as mortes são consideradas pelo estado como baixas ou danos colaterais. Isso é um absurdo total!
O estado por sua vez, vende para a população há quarenta anos que as polícias precisam ir para o enfrentamento armado contra esses grupos custe o que custar. O custo financeiro dessas operações é muito alto e nunca se presta contas e para as vidas perdidas, não existe reparação possível. Já estamos em 2022, século XXI, mas ainda insistimos aqui no Brasil em lidar com essa questão das drogas proibidas como um problema de segurança pública ao invés de saúde pública. E dessa forma seguem morrendo crianças, policiais, jovens, idosos e famílias inteiras que não conseguem se recuperar do trauma vivido após perder um filho(a) vítima de homicídio.
A. M.: O que a série tem a dizer no momento que temos na presidência Jair Bolsonaro, que ampliou o acesso às armas?
R. M.: Acho que a série traz um debate e reflexões sobre um problema que é causado pelas armas. Homicídios, chacinas e genocídios são violências extremas que as armas são os instrumentos utilizados para realizar. Arma, é um artefato de muito fetiche no universo masculino e menor no universo feminino. O homem costuma acreditar que uma arma pode trazer uma defesa pessoal para ele e sua família, o que pouquíssimas vezes acontece, e que impõe respeito e poder.
Arma é um símbolo universal muito utilizado na história da humanidade para conquistar territórios ou defender tronos e reinos soberanos. Nas democracias atuais, ela deve ser de uso restrito das forças de segurança, sendo usadas apenas em casos de extrema necessidade. As armas não devem ser banalizadas como infelizmente são em alguns países e aqui no Brasil.
Os números estatísticos nos mostram, através das chacinas constantes e homicídios, o tamanho do erro que é liberar armamento para a população indiscriminadamente. Mas o lobby da indústria bélica é muito poderoso e consegue suprimir esses dados negativos, fazendo a população acreditar que se ela estiver armada, irá estar mais segura. O que na pratica, e com os números levantados em todos os estudos sobre esse assunto, mostram que isso não existe.
Essa pauta é bastante complexa e sempre foi muito usada por grupos políticos de extrema direita para angariar votos. Tivemos um sucesso comprovado estatisticamente no Brasil com a campanha do desarmamento e infelizmente no governo de Jair Bolsonaro tivemos um retrocesso absurdo.
A. M.: Por fim, qual a importância do documentário na fronteira entre o real e a ficção?
R. M.: O cinema é uma paixão. Eu sou completamente apaixonado pelo cinema e pelas suas infinitas possibilidades de contar uma história. Criar narrativas é uma das prerrogativas do cinema desde sua origem e transitar nessa fronteira entre o real e a ficção me alimenta muito na hora de pensar um projeto que irá virar um filme ou uma série.
Acredito que as séries atualmente – eu sou um consumidor diário de série – estão tendo um tremendo sucesso por transitarem nessa fronteira entre o real e o ficcional e também por usar e abusar das gramáticas cinematográficas. Como realizador, gosto de subverter alguns paradigmas e narrativas gramáticas para provocar novas experiências no público e usar elementos da ficção no documentário tem me atraído muito nesse sentido.
Sei que isso às vezes incomodada quem defende a linguagem do documentário mais limpa, voltada para o cinema direto e sem música. Eu gosto desse formato do documentário clássico e uso bastante, mas também gosto de fazer essa mistura de linguagens esticando algumas cordas. A função primária da arte é questionar e provocar. Quero experimentar na ficção o mesmo processo, e usar um pouco da gramatica e dos elementos do documentário para misturar as narrativas e transbordar as fronteiras.
A série documental “Relatos do Front – A Outra Face do Cartão-Postal” foi exibida originalmente no Canal Brasil e também está disponível no Globoplay.
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