“No princípio existia o verbo”
Meio bíblico, né?! Hum… nem tanto. Leopoldo Lugones, nosso autor de hoje não é o que podemos dizer um católico nato. Muito menos praticante. “As forças estranhas”, nossa resenha da vez, chega com ares de mistério, realismo-mágico, passagens bíblicas e um “quê” de heresia que só pode ser visto nas entrelinhas (às vezes, fora dela também).
Em 1906, surgia no século XX, um torpor exagerado e uma busca mais que curiosa sobre religiões, misticismos e assuntos afins. E como sempre foi um homem à frente de seu tempo, Lugones, coloca em “As forças estranhas”, um resumo desse século um tanto misterioso e talvez cabalístico. O que podemos adiantar, pois, é que tal obra não segue padrões comuns. E que cada narrativa – porque são muitas – menciona passagens bíblicas, vistas sob outra ótica.
São, ao todo, treze contos – curtos e cumpridos, estranhos e normais. Repletos de paradoxos e ironias espelhadas pelo e no próprio autor. Esses contos, apesar de terem o mesmo cerne, não são interligados. O que faz com que possamos lê-los sem uma ordem cronológica. Facilita, mas não tanto. O fato é que cada um tem uma peculiaridade ímpar que faz com que eles sejam únicos.
Separamos apenas dois para deixar aos nossos Booklanders àquele gostinho de “nossa… tenho que ler esse livro”.
A estátua de sal:
Faz menção à passagem bíblica na qual, a mulher de Lot (Ló, que era sobrinho de Abraão), sofre uma rigorosa repreensão de Deus. Ao deixar a cidade de Sodoma, ela, curiosa como (quase) toda mulher, olha para trás contrariando as ordens do todo poderoso.
Na história contada pela Bíblia, Deus resolve destruir Sodoma por achar que naquelas terras não havia um ser humano que prestasse. No entanto, a uma única família foi permitida a saída do lugar antes da total destruição. A família de Lot. A única exigência de Deus, foi que eles saíssem sem olhar para trás. Logo viu-se que a mulher de Lot não o obedeceu.
No conto de Lugones, um monge está passeando por uma cidade – que não sabemos qual – e descobre a estátua de uma mulher. Esse mesmo monge a salva e faz com que ela volte à vida. A salvação é feita por intermédio da fé, o que é bem irônico, já que também pela fé, foi que Deus a fez uma estátua.
Nesse conto, temos uma viagem pelo mistério feminino. Lugones trata as mulheres com uma curiosidade quase científica. Como se fossem mesmo dignas de estudo. E aqui, nesse mesmo contexto, temos a passagem de Eva e a maçã, o fruto do pecado original, o pecado da mulher de Lot. E nossa… porque a mulheres são vistas como sinônimo pecado?
Para terminar, um dos mistérios que esse conto esconde está na parte em que esse mesmo monge pergunta a moça o que ela viu ao olhar para cidade de Sodoma. Em um primeiro momento, ela acha melhor não dizer, mas depois lhe conta e o que passa a seguir, bem… só lendo.
Viola Acherontia:
Viola de violeta, sim a flor. Acherontia é um neologismo latino. Ou seja, uma palavra inventada que acabou sendo englobada ao vocabulário. Se fôssemos traduzir, seria algo muito semelhante à “Violeta Mortal”.
Não temos como saber a intenção de cada autor ao escrever uma obra. Mas se tivéssemos o poder de, pelo menos, “achar”, nesse caso, “acharíamos” que Lugones queria que ficássemos com raiva mesmo. Muita raiva.
O conto narra a história de um jardineiro que sonhava em criar a flor da morte. Foram 10 anos de tentativas sem o menor sucesso. E não lhe importava o quão mal ele fazia as flores, afinal, ele acreditava que os vegetais não possuíam alma.
Narrada em primeira pessoa, o jardineiro nos conta todas as experiências feitas – e acreditem, elas são terríveis – e agora, a próxima experiência estava sendo feita com as violetas negras. Negras, porque elas já eram frutos de uma outra experiência frustrada. E como esse tipo de flor não tem perfume, lhe agradava a ideia de que a morte chegasse sem avisos.
Viola Acherontia é um conto cheio de simbolismo. A começar, quando mais uma vez, mulheres e flores são alvos de comparação. Diz que as plantas têm o cérebro localizado embaixo da terra. E as mulheres na cabeça… são comparadas com humanos o tempo inteiro.
Tudo que se escreve, se escreve para alguém. O que seria da Woo! Magazine, por exemplo, se não tivéssemos nossos leitores divos? Mas o fato, é que na maioria das vezes a escrita dá ao escritor o poder da retórica. E o mais curioso em “As forças estranhas”, é que Lugones tenta contar a história da criação do mundo, ao contrário. E é realmente esse feito que chega a fascinar.
Ele não defende Deus em um só minuto, na verdade o coloca como o grande vilão. E nos vale a lembrança, José Saramago fez a mesma analogia em Caim, que já retratamos aqui. O papel de protagonista e antagonistas são vistos ao contrário. E o leitor tem que estar preparado para isso. Porque pode haver um choque de interesse entre o religioso e o literário.
A edição lida foi a da Landy Livraria Editora. São 226 páginas de conflitos internos e externos. Vale à pena dar uma olhadinha.
“A vasta cidade libertina era para mim um deserto onde se refugiavam os meus prazeres.” (p.31)
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