“Eu axo quinao passei no teste de Rô Shaque.”
Se pudéssemos nos permitir começar essa resenha com um minuto de silêncio, é certo que o faríamos. Afinal, mesmo diante de obras midiáticas que inundam as prateleiras das livrarias, nos permitimos, enfim, começar 2019 com aquele ar de reflexão. Se tínhamos lições que 2018 deixou passar, “Flores para Algernon”, de Daniel Keyes, trouxe-nos lembretes de como deveríamos seguir daqui para frente. Forte, enfático, sedutor e instrutivo, “Flores para Algernon”, nos molhou os olhos e esquentou o coração.
“Especial” é alcunha recente. Coisa de Xuxa e seus baixinhos. Em outros tempos, pacientes com graves problemas intelectuais eram chamados de dementes, loucos, retardados, deficientes… e por ai seguem aos montes palavras de alto teor pejorativo. Ser politicamente correto nos trouxe uma empatia falsa de que todos podem – e serão – aceitos e inseridos na sociedade. A grande questão é que na teoria, a prática é totalmente diferente. E foi, talvez, de maneira cruel e distinta, que Charlie Gordon tenha aprendido que “ser diferente [não] é normal”.
Charlie, um homem com várias limitações intelectuais, foi selecionado para participar de um experimento, no qual, uma cirurgia revolucionária prometeria aumentar em muitos por cento o seu QI. E seria realmente esplêndido e insurgente, se tal cirurgia cumprisse o prometido. Porém, pelos relatórios de progresso narrados e descritos pelo próprio Charlie, o livro se mostra um verdadeiro e imensurável soco na boca do estômago.
Para começar, nos causa certa estranheza o modo como a obra começa. É Gordon quem nos explica como será a cirurgia e como foi parar nesse processo seletivo. Mas como ele é dotado de um QI baixíssimo, seus relatórios têm os mais grotescos erros de escrita, além de faltar com a coesão e coerência. E acreditem, ainda que haja algumas tiradas engraçadas no começo, o peso cômico só está ali para dar um ar leve num assunto que não detêm nenhuma leveza. Primeiro relatório de progresso: “3 de marsso”.
Charlie quer ser inteligente. Ele acha que assim vai poder voltar para casa. Casa esta que foi expulso pela própria mãe. Acredita também que a inteligência o vai deixar menos solitário. E seus amigos da padaria – ah, sim… depois que foi expulso de casa, o melhor amigo de seu pai o “adotou” e o levou para limpar o chão de sua padaria – irão respeitá-lo. Ser mais esperto o vai trazer uma vida digna. E ele vai poder entender melhor o que se passa com ele e com as pessoas ao seu redor.
Durante os muitos testes realizados para que a cirurgia tivesse o efeito que os médicos/pesquisadores alcançassem, Charlie conhece Algernon; um ratinho branco de laboratório que passou pelo mesmo processo que ele passaria e que respondia significativamente bem ao resultado/ tratamento.
O que acontece depois da cirurgia, no entanto, é um carrossel de emoções. E desse ponto em diante, perdem-se as pausas cômicas e só temos brutalidade em cima de brutalidade. E não falamos aqui de violência física. É no emocional que a coisa fica realmente feia.
“A solidão é fera, a solidão devora”…. Alceu Valença, que talvez nem conheça a história de Charlie Gordon, soube em uma frase definir tudo que veio depois. O fato, pois, é que a inteligência afasta as pessoas. E de repente nos vemos mais e mais dentro de nós mesmo. Charlie se via o tempo todo. Ninguém entendia o novo Charlie… e o leitor nunca mais vai enxergar o mundo com os mesmos olhos.
Além do mais, o autor Daniel Keyes levanta discussões pertinentes acerca do “ser ou não ser”. E nós, leitores, não somos apenas coadjuvantes. Quiçá, do nosso lado haja um Charlie Gordon. E nós, perdidos nesse labirinto interno do egoísmo não conseguimos enxergá-lo. “Flores para Algernon” conta uma história de superação ao revés. Uma mudança que acontece de dentro para fora. E que, com ou sem cirurgia, todos deveríamos pensar sobre.
“P.S. porfavor si você tive uma oportunidade colo qui umas flores no tumulo du Algernon nu quintau.”
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