A dor. O amor. A ruptura. A cura.
Assim é dividido o livro de Rupi Kaur, “Outros Jeitos de Usar a Boca”. A poeta, indiana e atual residente do Canadá, tem viralizado nas redes sociais através de trechos da sua obra. Justamente pela sua característica breve, sucinta e fragmentada. Os poemas do livro não são como declarações definitivas, as palavras deslizam como pensamentos soltos da autora. Estamos em um trem. Cada estação um estado. Na dor, vemos a sua infância e inconformação com o lugar feminino. No amor, vemos uma alma questionadora e ainda assim entregue às sensações do amor e do sexo. Na ruptura, vemos o nascimento da alma insubmissa. Na cura, vemos o remendo do eu lírico consigo mesmo.
O livro é bom porque parece verdadeiro. Se sente assim. E não há outro jeito de fazer boa poesia. A tal voz, tão almejada por escritores iniciantes, está lá. Clara, cortante, feminina e particular.
A poesia contemporânea feminina se debruça sobre fragmentos de mulheres que a socialização feminina forçou. A poesia de Rupi encontra pontos de contato com a maravilhosa obra da Warsan Shire. Warsan Shire é a poetisa que encontrou destaque internacional por suas inserções no último álbum da cantora Beyoncé, o Lemonade. Inclusive, também podemos observar semelhanças entre a lógica do álbum visual poético e o livro de Rupi. Ambos se organizam por estágios. Os de Rupi mais condensados que no álbum, tão simples, e por isso tão identificáveis, nos escancaram às veias abertas.
“Quero pedir desculpa a todas as mulheres que descrevi como bonitas antes de dizer inteligentes ou corajosas. Fico triste por ter falado como se algo tão simples como aquilo que nasceu com você, fosse seu maior orgulho, quando seu espírito já despedaçou montanhas. De agora em diante vou dizer coisas como, ‘você é forte’ ou, ‘você é incrível!’, não porque eu não te ache bonita, mas porque você é muito mais do que isso.”
Quando há a citação de uma mulher encolhida no livro de Rupi, mulheres podem sentir suas entranhas curvando: reconhece-se esse lugar. O livro não é sobre a experiência humana, é sobre a experiência feminina. E literatura é sobre isso.
Certa vez, em uma aula de roteiro dramático para cinema, a escritora Sônia Rodrigues (filha do dramaturgo Nelson Rodrigues), disse a seguinte frase: “o mundo só parece inconfundível na obra de ficção quando é absolutamente localizado.”. Para ser universal, primeiro é preciso ser particular. O eu lírico de Rupi é sobre ser uma mulher indiana. Não é estranho que mulheres do mundo todo, de realidades tão diferentes, se identifiquem e declarem que tais versos são como seus. Aí mora a mágica da poesia, depois que sai do corpo, é do outro, não mais de quem fez.
O poeta é um mero viajante intérprete, que doa seu punho àquelas palavras que imploram para ser ditas. Depois que o centro é tão absolutamente de Rupi, ele poderá ser de qualquer mulher. O que nos une é o fio invisível do silêncio, tantas vezes citados no livro. Seja menos, pense menos, fale menos. “Outros Jeitos de Usar a Boca” é sobre ter fala. Sobre a boca que não é ferramenta do sexo do imaginário masculino, mas da boca que às vezes é lápis, da veia calada de cada mulher que quer gritar. Há muitas formas de se berrar sem usar a garganta. Aqui Rupi nos presenteia com um eu lírico corajoso e sincero.
“Você me diz para ficar quieta porque minhas opiniões me deixam menos bonita, mas não fui feita com um incêndio na barriga para que pudessem me apagar. Não fui feita com leveza na língua para que fosse fácil de engolir. Fui feita pesada, metade lâmina, metade seda. Difícil de esquecer e não tão fácil de entender.”
É uma leitura leve sem ser superficial. Contemporânea sem se debruçar sobre trocadilhos ou gracinhas para as mídias sociais. Acompanhados de desenhos de traços simples, seus versos delineiam a nós mesmas.
Por Érika Nunes
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