Ah, o doce cheiro de polêmica pleno inverno. A tradução polêmica da vez refere-se ao uso de gênero neutro ao fim da primeira temporada de Sandman. Para tratar a questão, a Woo decidiu fugir da via comum, longe de ideias prontas, e averiguar a questão na base: a linguística — afinal: o português está morto? Sente-se, pegue sua pipoca, que o caminho será longo.
O que é gênero para a linguística
Em um primeiro momento, uma distinção fundamental de ser feita é aquela entre sexo e gênero. O gênero é uma categoria linguística para classificação de palavras e é, em alguma medida, arbitrária. Como assim? O português normativo possui dois gêneros, masculino e feminino, e os substantivos irão se enquadrar em uma ou outra categorias — ou ambas.
Um exemplo clássico é a palavra Sol: masculina no português, feminina no alemão (die Sonne), ou possivelmente ambas no norueguês (Solen, Sola). Não há nada que obrigue uma palavra a ser de um gênero ou outro. Sendo mais extremo, de volta ao norueguês, dizer “a mulher” pode ser feito tanto com o gênero masculino quanto com o feminino, por mais estranho que possa parecer (kvinnen vs kvinna). Logo, não há sexo inerente a essas palavras, tampouco gênero — pois cada idioma classificará o mundo à sua maneira.
Em muitas línguas no mundo há uma terceira categoria nem masculina nem feminina, mas “neutra”, no sentido gramatical. O neutro do latim não é o mesmo dos dias de hoje, pois, com a exceção do romeno, ele se fundiu com o masculino — por razões diversas — em todas as línguas românicas, incluindo o português. Voltaremos para o “neutro moderno” em breve.
Não é precisamente adequado apontar que o português de repente “virou” ou “perdeu” algo, sobretudo se tratando de um longo processo de séculos e que ainda se mantém fossilizado na língua. Que tal voltar no tempo antes dos romanos?
Originalmente, as línguas indo-europeias faziam distinção não entre masculino e feminino, mas entre “animado” (coisas vivas) e “inanimado” (coisas não vivas). Resquícios disso se encontram em toda a parte, como o Hitita, língua que conservou esse fenômeno, e o latim, através de palavras como studēns (estudante), iguais na forma masculina e feminina (originalmente a categoria animado).
Outras, entretanto, não fazem distinção alguma, como é o caso do japonês e turco. Isso não isenta a língua de expressas categorias de gênero, como já tratamos algumas aqui e aqui sobre o japonês. O inglês “tradicional”, apesar de não marcar gênero na forma da palavra, bloqueia produções como as da frase abaixo por esse motivo.
*She is handsome.
Ela é bonitão.
Handsome é um adjetivo que só pode ser usado para se referir a substantivos masculinos.
O que é a gramática normativa?
Feitas essas considerações, há ainda um conceito importante a ser abordado: a gramática normativa, afinal, o que está em pauta é a língua padrão. Algo que deve ser pontuado assim que o assunto é linguística, pois é um engano comum, é que a linguística, enquanto ciência, não vai estudar a gramática do papel, do livro, mas a língua viva, o fenômeno de produção.
É verdade que também exista a área de estudos da língua através de documentos históricos, e com a primeira afirmação, não se implica que essa gramática (normativa) não tenha a sua importância. O que se pretende com isso é pensar: I – a língua normatizada não é a língua de fato; II – muito menos é como processamos a língua em nosso cérebro; III – ela foi escolhida a partir de uma variante de prestígio, de cima para baixo (Exemplo recente: para padronizar o italiano moderno, preteriram-se todos os dialetti em favor de oficializar o florentino).
“As meninas são espertas”
“As meninas são esperta”
“As menina é esperta”
*”A meninas é esperta”
Embora a primeira frase seja a única aceitável em contexto da gramática normativa, o nosso conhecimento linguístico como falantes de português brasileiro nos permite reconhecer como parte de nossa língua (do dia a dia!) todas as frases, com exceção da última — e há uma explicação para isso.
Quando o cérebro de um falante de português processa a frase, ele irá atrás da concordância de gênero e número, e o que é importante aqui é que, em termos de marcação de número, basta que só se diga o plural uma vez e o resto da frase pode ser flexionada no singular. Quer dizer que pode tudo? Longe disso, nossa gramática interna irá bloquear iniciar com singular e depois marcar o plural, bem como ficar alternando (singular-plural-singular…).
Mais além: enquanto dizer “Os pássaro azul voam” é sinônimo de baixa escolaridade e desconhecimento da norma padrão — o que já foi desmentido várias vezes — isso não é verdade para o armênio, onde o contrário que é estranho e agramatical.
Երկու հատուկ պաղպաղակ, խնդրեմ։
Dois “sorvete especial”, por favor.
Dois sorvetes especiais, por favor
Em armênio, já entregue a informação de plural, como por um numeral, a única concordância necessária é a verbal.
Um exemplo mais radical disso está na influência das línguas bantas, africanas, no português brasileiro, com um fenômeno quase que exclusivo entre as línguas de nossa família. Curiosamente, por várias razões essa influência não penetrou no próprio português de Moçambique ou Cabo Verde, por exemplo.
“Minha mãe vacinou”
“O computador não ligou hoje, né?”
“A cada um minuto, quatro coisas vendem”
A construção ergativa. Sua mãe vacinou outro alguém ou se vacinou? Todos irão entender, mas isso não é aceito pela norma.
Não faltam exemplos para descredibilizar a língua normativa como um ideal a ser seguido, simplesmente porque em termos práticos ela não é um registro melhor que o de um falante não escolarizado. Pode ser uma ideia de se torcer o nariz, afinal, a princípio, é comum que se fale em um “português correto”, “de pessoas inteligentes”, o que não só traz a falsa impressão que algumas pessoas não sabem falar a própria língua nativa, como ignora toda sua riqueza. A única língua que não muda é a que está morta.
Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?
Famigerado, 1962 — Guimarães Rosa
Pronome… neutro?
Talvez polêmicas recentes dentro da tradução tenham criado alguma aversão à própria palavra pronome — frequentemente utilizada de maneira incorreta — que nada mais é do que uma palavra que retoma um nome em uma frase. Em “Maria ama Marcos, ela o acompanha sempre”, “ela” e “o” são pronomes que retomam, respectivamente, Maria e Marcos.
O português, assim como as demais línguas românicas, possui diferenciação por gênero na terceira pessoa, nesse caso com os pronomes “ele”, “ela” e suas demais formas. O neutro, que era usado para se referir a objetos/coisas, modo geral, mas também algumas classes de pessoa (scortum, indivíduo que trabalha com prostituição), desapareceu em um estágio tardio do latim.
Caso/Gênero | Masculino | Feminino | Neutro |
Nominativo | ille | illa | illud |
Acusativo | illum | illam | illud |
Genitivo | illīus | illīus | illīus |
Dativo | illī | illī | illī |
Ablativo | illō | illā | illō |
No inglês, para uma terceira pessoa de gênero não especificado, o they singular tem sido utilizado por séculos – mesmo por Shakespeare (Err. 4.3.2-3) – mas por uma combinação de fatores, incluindo influência de gramáticos, caiu em desuso na maior parte dos dialetos, porém permanecendo fossilizado em determinadas estruturas.
Somebody forgot their wallet here.
Alguém esqueceu sua carteira aqui.
Contudo, em décadas recentes seu uso ganhou força, grande parte por influência do movimento LGBT+, e há um consenso entre os grandes dicionários e gramáticos que não há incorreção em empregá-lo em textos formais. A despeito disso, há quem resista ao seu uso
Retomando os descendentes do latim, não há na língua padrão uma terceira opção que não faça a marcação da oposição masculino x feminino, equivalente a “ele” e “ela”. A questão se complica por não existirem versões de palavras em pares, como rei e rainha, bem como a não existência de um morfema marcador dessa opção em adjetivos, como belo/bela.
Resumindo a história, as minorias de cada dessas línguas encontraram alternativas. No espanhol optou-se pelo elle, catalão elli, francês iel, português — majoritariamente — elu. Para não falar da terminação em -e, aplicada a seres e criaturas.
Trata-se de uma novação consciente dentro de uma língua natural, algo que ocorre a todo tempo e há vários precedentes na história. Embora seja mais comum ocorrer a nível lexical, de vocabulário, ela pode ocorrer mais raramente na morfologia, fonologia, e até na representação escrita.
Alguns bons exemplos bem sucedidos podem ser citados: a reforma do Turco de Atatürk, imposta e com influências a nível de vocabulário e morfológico; a introdução do hen (pronome neutro) no sueco; e a reintrodução no português de “cl, pl, fl”, através de cultismos, pois os equivalentes se palatalizaram (ex: plānum > chão, mas plānum > plano).
Enfim, Sandman
É no episódio 10, minuto 34, segundo 44 que saiu a cena motivadora deste post. Sem maiores detalhes, Morpheus, rei dos sonhos, refere-se a Desejo, ente cósmico com quem compartilham os mesmos pais, como “minhe irmane”, isto é, ao menos na legenda oficial em português pela Netflix.
Neil Gaiman não é um escritor de sucesso por acaso. Preocupado em reconhecer e representar outras realidades, faz parte de seu ofício como autor a sua posição política em busca de uma obra mais diversa — e estamos tratando dos anos 80, quando ser queer estava diretamente associado com a AIDS, que possuia um estigma muito maior do que hoje.
Na HQ, Gaiman representou Desejo pelo pronome “it”, neutro de terceira pessoa utilizado para coisas — e às vezes para bebês… — mas decidiu atualizar para they, recentemente, como o próprio já comentou em seu Twitter. Desejo, afinal, pode ser o que bem entender, e usa isso para manipular aqueles ao seu redor. Já na série, a palavra utilizada é sibling, sem equivalente literal em português normativo.
Não bastassem todos os personagens LGBT com destaque, Neil, mesmo quando trágico, sempre teve a delicadeza de tornar seus personagens verossimilmente humanos, trazendo — spoilers abaixo — tramas como a de Wanda, há inacreditáveis 30 anos.
O britânico segue enfático contra qualquer revisionismo que busque esvaziar sua obra, tal como questionamentos com a diversidade, que não é nova, chegando a se dirigir criticamente a brasileiros que tentam ser mais espertos que Sandman.
Apesar disso, alguns tradutores parecem se fechar para a possibilidade de formas “não consagradas” na literatura, mesmo que, como no caso de Sandman, seja parte basilar da obra. Como é o caso de, por erro crasso, confundir-se sexo e gênero gramatical.
Encerrando o caso em análise: aqui, em Sandman, não se trata de um caso de “pronome neutro”, como comentado por alguns, mas de um morfema de gênero neutro, variante não padrão da língua.
O português está morto
Longe de qualquer referência blasé à Nietzsche, o que se pretende dizer com “o português está morto”, aqui, é que para começo de conversa ele nunca mesmo esteve vivo. Façamos um exercício de abstração: quando foi que o português se separou do galego-português? E do latim?
O leitor pode não ter uma noção aproximada na cabeça, mas basta refletir: um belo dia as pessoas acordaram e estavam falando outra língua? É verdade que entre nossos parentes latinos, conseguimos entender mais um idioma (galego, castelhano), e outros menos (francês, romeno), como um degradê, um continuum. Pensando nisso, qual é o português correto? Onde e quando começa português? E o espanhol?
A criação de gramáticas foi historicamente importante para a construção das noções de estado-nação e a própria identidade nacional de povos europeus, mas também utilizada para promover uma tese de superioridade sobre línguas sem registros escritos — como as línguas indígenas.
Deve-se dizer que, no caso da gramatizalização do português, foram feitas escolhas que preteriram formas consagradas anteriormente em Camões e nas cantigas trovadorescas do século 13. Como poderiam os maiores escritores até então terem de repente “erros de português” em suas obras?
Um exemplo clássico é a colocação pronominal. Diz-se que está assentada nos documentos e escritos de “grandes escritores” da língua, porém, sabe-se que a tendência do português brasileiro de formas oblíquas antes do verbo (ex: “me ajude”) é mais antiga que a europeia (ex: “ajude-me”)n e, aliás, é encontrada também em Camões.
Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.
Pronominais, Oswald de Andrade (1925).
Poderia se citar a exaustão arbitrarismos na construção das normas gramaticais — que não são as mesmas dos falantes nativos — mas sejamos sucintos. Em resumo, está assentado faz tempo na linguística, mas deve se pontuar: a gramática normativa NÃO é a língua — para isso existem as gramáticas de uso, como a de Evanildo Bechara.
Feito esse histórico de decisões tomadas de cima para baixo, o português brasileiro é essa quimera de língua latina com influências indígenas e africanas, nas próprias estruturas, todas usadas no dia a dia, porém sem status de oficialidade. Não será uma terminação neutra, ou pronome que vai destruir algo que “nunca foi”.
É, no mesmo sentido, um mito que os brasileiros não sabem falar a própria língua. A “norma culta”, entre os problemas do sistema de ensino, encontra entraves para ser aprendida no Brasil, diferente de Portugal, porque nossa língua não é a mesma (onde que os portugueses enfrentam o mesmo problema com o ergativo?). Quer dizer que não devemos aprendê-la? Longe disso, porém, deve-se refletir que a língua, desde a norma, sempre foi usada para nos controlar, e a gramática reflete isso.
Tal como o português de Adoniran Barbosa, o registro do português com formas de terceiro gênero faz parte da língua. Claro que não vai ser utilizado em uma redação de ENEM, e que se utilize disso como espantalho em um dos países mais hostis à comunidade LGBT+. No fim do dia, não há uma conspiração ou agenda que obrigue alguém a usá-lo, quando o que se vê na prática é justamente o contrário.
Conclusão
O que se buscou com esse texto, mais extenso que o desejado a princípio, foi demonstrar que não há fundamentos para um ataque à escolha dos tradutores da Netflix em Sandman, tampouco pelo uso de formas neutras e alternativas no português. Não se utiliza a língua normatizada em contextos informais.
Como último exemplo, algumas estruturas são gramaticais para o português angolano, mas não ao brasileiro. Trata-se de uma questão de contexto de grupo — com algumas variantes sendo estigmatizadas, outras valorizadas. No fim, a língua pode acabar por ser utilizada como ferramenta para justificar seus preconceitos.
“O João lhe baterem na mãe dele” (Português Angolano)
“O João foi batido pela própria mãe” (Português Brasileiro)
A influência do Quimbundo no português de Angola.
Ignorar que Sandman, essa adaptação com produção acompanhada de perto pelo próprio autor, possui uma forte veia queer desde o material de referência, se extrapola em contradição ao ponto de ser um atestado final de não se importar com a mensagem da obra.
Não se trata no fim das contas de obrigar alguém a falar de tal maneira — sobretudo quando a maioria das pessoas não está disposta sequer a olhar para o outro lado com respeito. É preciso debater as dinâmicas da língua desde cedo, seja porque ela é uma arma de controle, quanto para que não se mascare o preconceito através de ideias falsas e científicas só na aparência — somente porque nos é conveniente.
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A lingua “real e viva” é a lingua compreensível pelo povo, e como você mesmo exemplificou a mesma foi adotada gradualmente pela vontade própria dos falantes não pela imposição sob um pretexto falso de “respeito” obrigatório, se tal característica não é compreensível ao povo comum e o mesmo a rejeita, não é yma modificação de uma língua viva nem mesmo algo tomado de comum acordo, e sim um dialeto separado ao qual se tenta impor aos demais tornando sua obra inesquecível ao público incapaz de compreender tal dialeto, logo é incorreto utiliza lo quando não ah compreensão do ouvinte, fora que a linguagem culta é a língua real pelo simple fato de ser acessível e compreensível pela maioria dos falantes de determinado idioma por serem os pontos em comum que formentam as bases de uma idioma, modifcar isso abruptamente pela imposição de um grupo minoritário, é destruir uma língua por torna la inacessível aos falantes maioritários (se um texto em linguagem neutra já é inacessível a população brasileira quem dirá aos demais falantes do idioma português principalmente os africanos) logo, sua imposição por meio de um grupo minoritário é um desrespeito para com o falante, especialmente quando é feita de forma indireta na cultura pop por meio das nuances que aos poucos, mina um idioma de suas bases, sendo tal ato, uma aberração