Urubus gigantescos com unhas afiadas em cima do poste, em bicadas, comem o despacho na travessia Vaz Lobo & Vicente de Carvalho. O aluguel de mesas e cadeiras, pichado em letras garrafais, na passarela do metrô Thomaz Coelho. Carcaças de carros como dejetos se aglomeram nas ruas de Inhaúma. Homens definham a cada sugada no vapor branco condensado dentro de copos de água mineral. Isqueiros acendem e apagam. Os corpos gangrenados na calçada em Manguinhos.
Missa matinal, 9 horas da manhã de domingo. A batina do padre em cor lilás adquire o mesmo tom chupão do pescoço do coroinha. Andaimes povoam prédios de tijolos e concretos, cabines com homens de dedos minúsculos apertão botões que despertam a Grande Máquina. Tubulações de gás preenchem o chão dos cubículos. E na rua Viúva Cláudia o gás espirra em manifesto de saudação, o Dolly Guaraná escorre entre os dedos queimados da moradora, antiga residente do Jacarezinho. Um colchonete, isqueiro e trapilhos. O sexo é pele na pele, nus em oral até o fundo da garganta.
Galão de água, o ingrediente na sopa dos mangueirenses. No viaduto, os vultos tumultuam-se encobertos por panos úmidos, cheios de carrapatos, fungos e piolhos. As saídas de emergência luminosas dentro de transportes públicos, nas boates, em shoppings, lojas de conveniências. Nada sinalizado nas ruas. Válvula de escape é 180.
Mar de morros, capim de lajes. A cidade ferve em erupções vulcânicas. Um já extinto ainda adormece em Nova Iguaçu. No metrô, linha 1, vejo atrás da vidraça, Zona Norte. As portas estão se fechando e Dorea Castanheda, atleta olímpica dos jogos Rio 2016, anuncia a grande bolha anestésica que paira sobre os edifícios. Mulheres fazem lamberóbicas em vagões femininos, rodopiam em espiral. Em pontos de ônibus, velhos berram ao telefone, não há mais nada a ser feito. Vidros trincados no BRT, estação Marambaia.
A engrenagem gira em roda viva. Lenta, em tração animal, uma égua ou um burro, daqueles que são alimentados por grama queimada e osso de galinha. O lixo em sacos pretos. Sudeste do Brasil, Rio de Janeiro, cidade do sonrisal. Indigesta pela comida de ontem, mastigo o algodão doce. Vivo o mal do século. Indigestão por comer demais. A cidade faz isso, a cada garfada, antes mesmo, ela já me engole.
Por Valeska Torres