“Há quem acredite na minha inocência. E há quem acredite que sou culpada. Não há meio termo”, diz Amanda logo no início do documentário que leva seu nome e sobrenome. Amanda Knox estreou como um filme original Netflix há poucas semanas e parece seguir uma identidade que está sendo estabelecida pelo streaming que sacramentou o binge-watching.
Nós temos o desejo latente de nos explicar de maneira dicotômica, porque é mais fácil ver pólos que ver zonas acinzentadas e confusas. Independentemente de qualquer crime, não desejamos nos vilanizar? Jogar toda a raiva contida das coisas que não podem nos atender em pessoas falhas e dúbias? Me parece corriqueiramente que sim.
Uma justaposição de imagens não muda a realidade, mas cria uma nova. E no terreno dos documentários, essa linha aflita gosta de brincar. Um documentário não é uma reportagem jornalística. Um documentário cria um produto cultural usando fatos soltos, com toda a perspectiva do criador. O espectador deve se esquecer disso durante o filme, mas não deve se esquecer depois.
Usei recentemente esse documentário para fazer um exercício com uma atriz. E pedi que ela assistisse. Após ver o filme todo e ler o texto que eu havia preparado ela perguntou: “Mas e aí, ela fez?”. Eu disse que pouco importava, até porque a verdade nos é inacessível nesses casos (talvez sempre), mas ela precisava me vender a Amanda dela.
O interessante dessa condução de documentário é que as próprias escolhas criativas nos remetem a uma falsidade de todos os atores envolvidos. O fundo preto, a luz, os textos de cada um como se fossem ensaiados, nos dão a impressão que essa história nunca existiu. Talvez não tenha, a do documentário ao menos só existe nessa hora e meia. E isso basta. Só após uns 60 minutos dentro dele parece que podemos ver os envolvidos mais crus e menos personagens.
Aqui o mergulho não é na vida da vítima, nem parece existir essa intenção de comover. Até os 14 minutos, quando a família da vítima é mencionada e aí passamos a entender, ah, nós falamos de um crime violento. De uma vida retirada, de uma menina que tinha uma mãe. Essa que fica, se importa, sente dor, quer resolução. Porém a vítima foi apenas pincelada para o contexto do filme.
O filme é mesmo sobre a Amanda e sobre como a mídia influenciou no caso. O que não é incomum analisando a História. A opinião pública e os tabloides sempre exercem uma relação de simbiose que cercam a tal verdade, essa que nos é distante. O destaque particular de situações que envolvem mulheres é o procedimento padrão de rapidamente recorrer à figura da mulher vampira. No cinema e na estética noir, a Vamp é aquela mulher de moral duvidosa, que seduz, suga os homens e os leva a cometer crimes e atrocidades. É isso que Amanda foi para os jornais, revistas e TV, uma isca de sexualidade, que só poderia ser culpada mesmo.
Como diz o promotor italiano católico sobre a sua percepção particular: “Deus move o mundo, mas os homens têm livre-arbítrio e devem ser responsabilizados por suas ações.”. O grande perigo é brincar de Deus ou detentor da verdade do universo, aqui ou lá. No final, nós não sabemos é de nada.
O documentário tem um clima leve, apesar do tema. Quase sentimos uma veia de humor. A escolha de trilha influi diretamente na nossa percepção de que estamos vendo um doc puramente ficcional, quase um mockumentary criminal (eu disse quase). Assim como as inserções puramente cinematográficas e encenadas. O jornalista no quarto de hotel, o promotor na cena do crime, a ex-acusada voltando à rotina.
No finzinho do doc a Amanda diz que o medo deixa as pessoas loucas. Suponho que sim. O que cabe a cada um diante de um filme é a consciência de que o cinema é uma peça filosófica e o que cabe também diante de situações reais é o recuo de nossos julgamentos, sempre que possível.
Amanda Knox não é um documentário surpreendente, não revela uma grande informação nova. Mas ele nos sugere o questionamento sobre o papel da mídia, de nós não envolvidos e inquisidores e de como a própria polícia pode ter a sua função corrompida em casos de grande repercução nacional e internacional. Vale assistir e vale pensar, sem deixar escapar, como a personagem de Meryl Streep em Dúvida “I have doubts.”. E quem não tem?
Hasta la vista, desconfiados.
Por Érika Nunes
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