“Nada é bom ou mau. O pensamento que faz assim” já nos dizia Shakespeare através da boca de seu famoso personagem, Hamlet, por volta de 1601. No entanto, descobrir qual forma enxergar o mal como algo que pode nos fazer bem nem sempre é tarefa fácil… O princípio do prazer é complexo. Quando Freud estudou os sonhos de soldados sobreviventes de guerras, percebeu a recorrência de situações traumáticas sendo revividas. A pulsão de morte (Tânato) se mistura à pulsão de vida (Eros) porque só se vive morrendo. Ainda assim, ao morrer, perde-se a vida.
Para Lacan, “o sintoma é a inscrição do simbólico no real”. Como fazer para aproveitá-lo sem nos destruir? A tarefa da psicanálise é trazer o inconsciente ao nível da consciência, permitindo ao sujeito a decisão sobre como conquistar a sua própria medida de Eros e Tânato. No começo do século XX, Freud nos falou do complexo de Édipo, esse desejo de não nos descolarmos da mãe – corpo que foi nosso, tanto durante a gravidez quanto durante a amamentação. O que Lacan nos mostra é que esse sentimento oceânico, sem fronteiras, o Amor, não precisa estar vinculado ao modelo tradicional do casal heterossexual de pais e filhos.
No excepcional filme de 1962, “O que terá acontecido a Baby Jane?”, dirigido por Robert Aldrich, com as atrizes Bette Davis e Joan Crawford, podemos ver como o Amor, quando não respeita a alteridade, pode se transformar em uma doença e deixar de ser Amor. As duas irmãs Blanche (Crawford) e Jane (Davis) vivem o pesadelo de olhos abertos. O roteiro de Lucas Heller nos traz uma investigação do inconsciente de duas pessoas que se odeiam fraternalmente. Ainda assim, as personagens não conseguem acordar para as pistas que se apresentam…
O espectador é tomado por risos de nervoso com a inesquecível Baby Jane em busca do tempo perdido. Seu número musical em que canta a sintomática canção “I’ve written a letter to daddy” (Eu escrevi uma carta para o papai) é um desesperado pedido de socorro.
O excesso de álcool acentua a agressividade do inconsciente de Jane e cala a possibilidade de diálogo com Eros. Ao buscar a fama vivenciada na infância, a personagem reflete o potencial destruidor de uma família em que os papéis sociais não estão claros. Muitos artistas mirins expressam a angústia de serem arrimos da família. Na série, “Love”, a jovem popstar Arya (Iris Apatow) tenta ser filha de pais que agem como crianças. Não é preciso estar em Hollywood para assistirmos a esse filme. Mesmo que os lugares não sejam fixos, já que é saudável que filhos cuidem de seus pais envelhecidos, a confusão pode produzir disfuncionalidade.
Quando a pequena Jane não interessa mais ao show business, a irmã mais velha Blanche encontra seu espaço para brilhar. Mais do que sucesso como estrela de cinema, ela quer o lugar que sua irmã ocupara naquela família em que os abusos são a norma. É natural, e pode ser saudável, que irmãos disputem entre si o colo e a atenção dos pais. O esforço para sermos reconhecidos por nossos talentos nos faz crescer. Qual o limite?
Sabe-se que os bastidores de filmagem trouxeram à tona uma verdadeira guerra. Há provas sobre como Bette Davis e Joan Crawford se detestavam, e criaram um excelente laboratório para Jane e Blanche nos sets de filmagem. Em março de 2017, a Fox estreou a série “Feud”, em que Susan Saradon e Jessica Lange interpretam as divas da era de ouro do cinema.
A rivalidade das atrizes e das personagens é sublimada pelo estatuto da arte: o show tem que continuar. Em um equilíbrio perfeito entre pulsão de morte e de vida, o corte final traz uma obra que, como toda prima donna merece, nunca perderá sua vitalidade.
Por Carmen Filgueiras
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.