“(…) Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. “Qualquer abismo” – continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas asas do Anjo da Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo – e o condão é a frase: ‘isto também passará’. Sim, leio então: ‘Tudo que subverte ou consome’ – paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de maiúsculas implícitas – vorazes, voragem -, abismais. (…)”
O texto de Caio Fernando Abreu (do qual foi retirado o trecho) foi a inspiração poética encontrada pela “Companhia Urbana de Dança” para narrar o complicado momento da produção de arte no Brasil. A metáfora embutida nesta inspiração e na composição coreográfica traça, por um lado, um paralelo com as dificuldades oriundas dos atrasos nos pagamentos de fomentos dos editais, e por outro com a vida sem exercer a arte que pulsa nas veias de cada um dos sete bailarinos.
Os abismos que envolvem as vidas manufaturadas pela arte são inúmeros. Por um lado belos e acolhedores e por tantos outros amedrontadores. A arte pode ser, em si, uma abordagem voraz da vida, que “subverte ou consome” realidades ímpares que se enquadram no arrepio de viver do que se ama. Arte essa que é capaz de transformar condutas, e sem a qual a rotina se tornaria um erro. Essa perspectiva acolhe quem dela vive (se alimenta, paga contas…) e a quem a ela recorre na busca de um merecido respiro. Nas palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche “Temos a arte para não morrer da verdade”. E em tempos tão confusos e polarizados, é, em essência, fundamental.
No entanto, o contexto nacional de incentivo não poderia ser mais desestimulante: Considerar-se-á as dificuldades naturais de conseguir fomento a partir de editais. Soma-se a este esforço, a frustração de, mesmo conseguindo o direito à verba, não receber nada. A inviabilidade da continuidade dos trabalhos se torna um fantasma que a “Companhia Urbana de Dança” aponta e afasta com seu novo espetáculo “5 passos para não cair no abismo”.
A cia dirigida por Sonia Destra Lie foi criada em 2005 abraçando jovens suburbanos cariocas. Nesses mais de dez anos de estrada a “Companhia Urbana de Dança” começou a ganhar destaque, especialmente no contexto internacional. Com sua alma brasileira e negra, já se apresentaram em teatros e eventos ao redor do mundo, como na Bienal Internacional de Dança de Lyon, no Museu Quai Branly, no Festival Internacional de Biarritz, no Teatro de Chelles, no Teatro Lido em Medelín, no Festival Hoptimum e Hangar 23 em Rouen (França), dentre outros. Além de entrarem com os pés direitos nos maiores teatros dos Estados Unidos: The Lincoln Center, Walker Center, Wexner Center, e por aí vai.
E mesmo com tamanho reconhecimento, o grupo não se viu imune às intempéries políticas e econômicas atuais. E como ato de resistência desenvolveram este trabalho forte que trata de riscos, amparo e persistência.
O espetáculo traz uma atmosfera crua, tendo como “cenário” somente uma iluminação que trabalha diferentes possibilidades só com luz branca. Destaques certeiros, névoa, caminhos… Diversas são as perspectivas alinhadas às propostas cênicas. E assim, a atmosfera clean é um acerto. A instabilidade (que vêm como conceito principal) percorre todo espetáculo, aos poucos se alternando com os sentimentos de busca, desespero e (enfim) proteção. O fio condutor é comunicado de forma clara. Em dados momentos (em especial no meio do caminho) podem ser apontados alguns excessos, que poderiam ser otimizados. Outra possibilidade que poderia ser estudada é associar um trabalho teatral para somar à potência física dos bailarinos, para assim ter um impacto ainda mais certeiro no público.
O trabalho tem a forte característica de respeitar em suas células a individualidade dos bailarinos. Seja na pegada contemporânea ou na dança urbana (que muito bem se mesclam e conversam ao longo dos números) fica claro o estilo de cada um. Essa opção é interessante, especialmente ao se pensar a proposta da Cia. Contudo, em certos pontos traz a necessidade de unidade, dando um ar confuso (e nem sempre interessante). Os bailarinos sustentam, mesmo que em diferentes graus de maturidade, a proposta a despeito do grade esforço físico demandado pelo número.
O espetáculo esteve em cartaz em curtíssima temporada no Rio de Janeiro, e nós não vemos a hora de poder rever esse grupo potente em cena.
Para acompanhar a agenda da “Companhia Urbana de Dança” vale dar aquela olhada no site do grupo.
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.