Nos últimos meses um burburinho sobre a série italiana da HBO, “A Amiga Genial”, começou a se tornar frequente no meio cinéfilo. Todos que a viram enalteciam suas enormes qualidades de roteiro, atuações, e pelo fato de a produção fugir dos padrões norte-americanos de confecção audiovisual. Bom, quem é fã de cinema e séries bem feitas não tardou a acompanhar a trajetória das amigas Elena Greco (Margherita Mazzucco) e Lila Cerullo (Gaia Girace) na obra que é baseada no livro largamente conhecido de Elena Ferrante, que também ajuda a escrever o roteiro televisivo. Ferrante escreveu uma trilogia que está sendo devidamente adaptada. No momento há duas temporadas baseadas nos dois primeiros livros, e a terceira está planejada para sair em 2021. Este texto se ocupará da primeira temporada que saiu na Itália em 2018, contudo só ganhou as telas mundiais neste ano.
A história, da qual “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” de Martha Batalha usa vários elementos, é sobre duas amigas, Elena e Lila, que nascem e crescem em uma vila italiana no período Pós-Segunda Guerra Mundial e, por terem inteligência e cultura elevadas, precisam superar os obstáculos impostos por uma sociedade patriarcal e atrasada para que suas ambições se realizem. Os oito episódios iniciais comportam a infância e a juventude das duas, que seguem caminhos diferentes, mas que nunca se separam por completo. Enquanto Elena, a duras penas, consegue manter os estudos fora da vila, Lila não tem tanta sorte, e precisa renunciar a escola para ajudar seu pai, dono de uma sapataria, até conhecer um homem para casar e formar uma família, destino da maioria das mulheres da época.
Lila larga a escola, porém vira uma devoradora de livros, assim como é Elena, que busca algo além da formação provinda dos professores. Esse conhecimento adquirido na literatura as mantém em um nível intelectual elevado, ainda mais em comparação com pessoas que não possuem tempo para nada além do trabalho braçal. Elas são iguais intelectualmente, no entanto, Lila se torna uma pessoa agressiva, arrogante e dominadora, enquanto Elena é de certa forma passiva e condescendente. Esses comportamentos conflitantes conferem uma espécie de contrapeso entre as ações que uma ou outra toma. É como se elas se completassem, tornando-se uma única mulher dividida em dois corpos. O comportamento de Lila é a demonstração de descontentamento com um mundo que lhe tirou todas as opções, todas as oportunidades. Já a de Elena demonstra certa gratidão por tudo o que lhe foi proporcionado, mesmo que ainda receba algumas pancadas da vida e se rebele contra convenções impostas.
Ambas lutam por uma condição pessoal melhor e, com isso, representam todas as mulheres que são subjugadas há muito tempo em sociedades dominadas por homens. A vila em que elas moram acaba dando uma ideia micro do que é o macro universo do macho dominador, já que os homens são a maioria no local e, além disso, demonstram comportamentos selvagens para com as filhas e esposas. Os episódios da primeira temporada de “A Amiga Genial” evidenciam violências afins, desde espancamentos, passando por violência psicológica, até estupros. Portanto, para reforçar ainda mais esse ambiente degradante, o diretor Saverio Costanzo trancafia as personagens femininas em uma vila lotada de prédios carcomidos envoltos na poeira vinda das ruas de terra. O único indício de progresso é do trem que vai e volta a todo momento em uma linha férrea montada em uma ponte, indiferente aos moradores daquele lugar parado no tempo. O futuro passa e ignora quem de baixo o olha. Claro que há mudança de ambientes, principalmente quando Elena vai estudar na grande Nápole, mas mesmo neles, seus pensamentos se voltam à vila e ao sofrimento de sua amiga deixada literalmente para trás.
“A Amiga Genial” vem do coração feminino, e serve para mostrar o quão sofrido, mas gratificante é ser uma mulher. Representando o passado e o presente, o roteiro escrito por Elena Ferrante, Saverio Costanzo, Laura Paolucci, Francesco Piccolo é denso, revelador e emocionante justamente para que o espectador sinta na pele toda a amalgama de sentimentos das personagens principais. Personagens essas interpretas por duas grandes atrizes iniciantes: Mazzucco que confere a sua Elena um ar singelo, com toques de insegurança e medo, e Girace que interpreta sua Lila como uma força da natureza transformadora. Elas dominam suas cenas como atrizes veteranas, e fazem com que o nível de qualidade dessa magnifica obra se eleve ainda mais, mantendo-se no topo junto das melhores peças audiovisuais da atualidade, sem dúvida.
Contexto Político e Máfia
A tal vila possui os guetos, onde estão as famílias pobres, e o centro dominado pela burguesia local que influenciam tudo e todos por meio do dinheiro em um país que acabará de sair destroçado de uma guerra. Ou seja, o conflito gerou a pobreza, que foi explorada por aqueles que conseguiam recursos por meios escusos, como o grupo mafioso Gamorra, que é citado e parece estar presente nas famílias mais abastadas da série, e pelo fascismo, que ainda respirava. Então, a resistência precisava ser formada a partir do comunismo e da consciência auxiliadora, que são representados por alguns personagens que acabam influenciando as duas garotas do centro da trama. Provavelmente, o resultado dessa influência e mais contextos políticos são mostrados com o decorrer da segunda temporada, que também ganhará uma crítica posteriormente.
Como adendo, vale dizer que muitos takes da série lembram “Ladrões de Bicicleta” de Vittorio de Sicca, que mostra a situação dos pobres após a guerra, e de “Rocco e Seus Irmãos” de Luchino Visconti, que traz a tradição da família italiana sendo destroçada pelo capitalismo – inclusive, os condomínios de prédios de “A Amiga Genial” parecem os mesmos mostrados no filme de Visconti.
Atualmente, as duas temporadas de “A Amiga Genial” estão disponíveis na HBOGO
Vídeo e Imagens: Divulgação/HBO
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.
Sem comentários! Seja o primeiro.