A arte contemporânea tem se alimentado da nostalgia e da repetição de velhas fórmulas de roteiro, o que justifica as inúmeras adaptações e retornos de filmes, livros ou personagens para diversos fins artísticos e, no teatro, a crescente produção de musicais. Dessa forma, quase não há muito o que surpreender ou esperar de novas produções de velhos conhecidos. Felizmente, “Bob Esponja, o Musical” é, sem sombra de dúvidas, um desvio a essa regra, levando o público que assiste o espetáculo no Teatro Sérgio Cardoso a uma das experiências teatrais mais agradáveis e fantásticas. O musical, que estreou em 2016 no Oriental Theater e se encaminhou para a Broadway no ano seguinte, conta com sua versão brasileira assinada por Anna Toledo e pela resplandecente direção de Gustavo Barchilon.
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A peça conta a história de Bob Esponja Calça Quadrada na cidade da Fenda do Biquíni. Bob, cozinheiro do famoso hambúrguer de siri, comenta com Seu Siriguejo o desejo de se tornar gerente do restaurante, o Siri Cascudo, sendo desencorajado por ele. Enquanto isso, a cidade entra em pânico devido à ameaça de erupção de um vulcão. Plankton e Karen, os clássicos vilões, se aproveitam desse momento de fragilidade para tentar hipnotizar os cidadãos para que gostem do Balde de Lixo, seu restaurante, sob o pretexto de oferecer uma cápsula de fuga. A cidade, apoiada pela prefeita, tenta arrecadar fundos para escaparem desse caos. Nesse contexto, Bob Esponja se une a seus amigos Patrick, uma estrela-do-mar, e Sandy, a esquila, para tentarem salvar a cidade.
A cenografia desenhada por Natália Lana é magnífica. A cenógrafa executou um trabalho exemplar ao conseguir articular, nos diversos cenários, uma amálgama da linguagem do desenho animado com um tom de realismo, além de, sobretudo, trazer a ambientação do fundo do mar de modo impecável. Dessa forma, observar o abacaxi em que vive Bob Esponja logo na abertura do espetáculo consegue provocar a sensação de assistirmos à televisão ao mesmo tempo que reforça vermos uma peça teatral. A cenografia é tão vibrante, vívida e colorida que convida o público a entrar na peça antes de ela começar propriamente, algo que deve ser parabenizado, tendo em vista a construção dessa ambientação na vasta extensão do palco nos diversos cenários que a peça utiliza.
Ao jogo entre cenografia e temporalidade, conjugam a história em quatro momentos de relação cena/extracena: no primeiro, na formulação do plano de Plankton e Karen contra a caótica Fenda do Biquíni; no segundo surge a dupla Bob Esponja e Sandy em sua ida ao vulcão enquanto ocorre o caos na cidade; no terceiro, emerge a cena do Lula Molusco cuidando do show-concerto dos Skates Elétricos paralelo aos eventos da cidade, o que nos brinda também com um número musical focado em seu sonho; e por fim, entre a conversa de Plankton e Karen, que “congelam” o tempo-espaço para revelarem seus planos malignos. A partir desses quatro principais lugares dramáticos o público acompanha a história.
A coreografia de Alonso Barros é religiosamente leve e elegante, tal como uma fusão entre a linguagem circense e a delicadeza do balé, cativando o público com movimentos graciosos e enérgicos que se encaixam perfeitamente na narrativa. Os dançarinos demonstram uma habilidade excepcional e adicionam uma dimensão visual incrível ao espetáculo. Cada movimento é executado com tanta paixão e destreza que é impossível não ficar impressionado com o esforço e a dedicação dos dançarinos e do supracitado coreógrafo.
Quanto aos personagens, a peça enfatiza Bob Esponja (Mateus Ribeiro), Patrick Estrela (Davi Sá), Sandy (Analu Pimenta), Lula Molusco (Ruben Gabira), Plankton (Tauã Delmiro) e sua assistente Karen, O Computador (Luísa Viana). Os três primeiros formam o núcleo dos heróis, aqueles que se movem em prol da cidade, enquanto os dois últimos compõem o núcleo dos vilões, que enxergam no caos instaurado uma chance de lucro e de dominação. Lula Molusco, assim como Perch Perkins, o repórter (Diego Campagnolli), formam o núcleo da cidade ao interagirem mais com os outros habitantes e informar ao público como os fatos se desdobram lá. É a partir desses três núcleos que o espectador tem contato com os eventos da peça. Ainda que o musical tenha incluído outros personagens do desenho, como a Senhora Puff, Senhor Siriguejo, Pérola etc., estes não possuem influência significativa nos acontecimentos centrais da trama, sendo apenas um aceno à memória do público.
A hierarquia dramática privilegia o núcleo dos heróis de modo quase equivalente ao dos vilões, que estão acima do núcleo da cidade. As relações estabelecidas são de amizade no primeiro, romântica no segundo e de coletividade na terceira; os heróis não sabem o tempo inteiro que estão contra os vilões, mas o oposto é verdadeiro e vemos, por exemplo, Plankton e Karen tentarem impedir Bob Esponja, Patrick e Sandy de salvarem a cidade ao atirarem um míssil na direção deles. Ainda, o núcleo heroico é o que mais preza a coletividade em relação à cidade, enquanto o vilanesco almeja apenas o lucro que pode se originar do caos na Fenda do Biquíni.
A interpretação de Mateus Ribeiro no papel do icônico Bob Esponja foi verdadeiramente magistral. Ele capturou perfeitamente a energia e o elevado otimismo do personagem, trazendo-o à vida de uma maneira excepcional, o que se enxerga em seu desempenho nas coreografias e, sobretudo, no trabalho com a voz, que ficou muito parecida com a de Wendel Bezerra, o dublador do personagem na animação. Sua atuação foi repleta de humor, captando a minúcia do Bob Esponja, o que manteve o público encantado do início ao fim. Sua interpretação brilhante tornou-o indiscutivelmente o coração e a alma deste espetáculo.
O fluxo narrativo cria um clássico cenário apocalíptico de fim do mundo, em que os personagens veem seus estilos de vida ameaçados pela iminência da erupção do vulcão, o que promove o ambiente caótico que o público acompanha. Por sua vez, o fluxo dialógico revela as relações entre os personagens, tais como o rompimento temporário na amizade entre Bob Esponja e Patrick que reforça a importância que um tem para o outro; a relação trabalhista entre Siriguejo e Bob Esponja, que revela a ganância do primeiro sobre o sonho de seu subordinado; o discurso xenofóbico que atravessa Sandy, interpretada por uma atriz negra, o que eleva ainda mais os significados sociais da peça, entre diversos outros momentos.
Assim, a interpenetração entre os fluxos narrativo e dialógico constitui uma metáfora à onda conservadora, à especulação financeira diante do caos, à exploração política e de poder trabalhista que organiza as relações sociais e as dimensões de identidades coletivas e individuais que se observam na iminência de uma catástrofe com proporções históricas. É de se notar que quem salva a cidade são os mais marginalizados nela: um empregado de fast-food, uma cientista que foi ameaçada de expulsão e um cidadão que figura no papel de “bobo”, como abaixo da média. A prefeita, o dono do restaurante, um fazendeiro, entre outros, aqueles que detém algum capital são representados como não preocupados com a coletividade, mas com a manutenção do seu status social e/ou econômico. Quando a cidade é salva, o que retoma o status quo inicial, muito possivelmente todos regressam às suas vidas comuns. Diante disso, é espantoso como dialoga com o mundo real do Brasil dos últimos anos.
Diante de tudo o que foi exposto, “Bob Esponja, o Musical” é uma peça para toda a família e é, sem dúvida, uma produção teatral que merece ser elogiada e apreciada pelo seu impacto artístico e social.
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