Quando um filho retorna para casa depois de um longo tempo de ausência, a mãe (a ótima e experiente Emily Watson) se enche de alegria. É maravilhoso tê-lo de volta aos seus braços. Afinal, ele é o preferido, o mais protegido, o orgulho. Ela cuida dele como se ainda fosse uma criança que precisa constantemente de acalento. O problema para ela é que a criança do passado agora é um homem estranho, quase um estrangeiro que não conhece mais o conceito de família. O incidente incitante em “Criaturas do Senhor” é a volta desse filho, que desiquilibra as estruturas de todo um vilarejo de pescadores na Irlanda. A tensão começa na primeira cena em que Brian aparece, mesmo que a atuação do requisitado Paul Mescal seja, naquele momento, leve e cheia de charme transmitido por seu sorriso amigável.
De fato, se uma palavra pode definir o longa dirigido por Anna Rose Holmer e Saela Davis é “tensão”. A narrativa é toda construída para deixar o espectador angustiado através da trilha sonora em notas estridentes e a fotografia e figurino com cores lúgubres. No entanto, é na simbologia empregada em suas cenas que “Criaturas do Senhor” se destaca, principalmente na forma como o roteiro de Shane Crowley associa ostras com o personagem de Mescal, que é especialista na pesca do molusco. Esses seres vivem e morrem “presos” dentro de suas próprias conchas. Brian, por sua vez, é individualista: o que importa são as suas necessidades e desejos. Ou seja, ele possui sua própria concha que o separa dos outros a sua volta. Por isso, quando fungos são encontrados em um lote de ostras, Brian mostra sua verdadeira e degradada face, até então desconhecida de sua mãe.
O antagonista então intensifica as suas ações, por vezes ilegais, no vilarejo. Como consequência alegórica, a pesca do local, antes quase toda constituída por peixes, passa a ser dominada pelas ostras. Os aspectos delas também é revelador, já que são deformadas e cinzas, como o caráter de Brian. As nuvens negras sempre carregadas e o mar revolto completam um cenário que parece saído de um filme de terror. Na verdade, o ambiente é a externalização das tragédias que começam a acontecer com vários personagens, com as de Sarah (em atuação comovente de Aisling Franciosi). As sombras nesses momentos estão sempre presentes, assim como a falta de profundidade de campo. A escuridão plana é o que se vê ao fundo de muitas cenas.
Com todos esses elementos, Holmer e Davis conseguem montar seu filme com louvor, no entanto, se não fosse por eles, talvez não alcançassem sucesso. Isso mostra o talento delas e de sua equipe para transformar uma história com aspectos banais em algo que surpreende em sua construção e no final impactante. Agora caberá ao espectador a tarefa de esmiuçar cada elemento planejado por elas — parte deles foi basicamente explanado aqui — para a total apreciação da obra, que é mais um bom exemplar do cinema irlandês.
“Criaturas do Senhor” já está disponível em cinemas selecionados.
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