A ficção e a realidade lado a lado
Muitos já tentaram, mas poucos tiveram o real sucesso em realizar um filme ficcional onde a realidade e o estilo documental andassem lado a lado de forma igualitária e próxima à perfeição. Para realizar tal feito, além de trabalhoso, é preciso ter muito cuidado com o conteúdo e a forma apresentados, mas em “Era o Hotel Cambridge” esse resultado salta da tela para nossas mentes de forma memorável.
Na obra, nos tornamos observadores da vida de refugiados recém-chegados ao Brasil que se uniram a um grupo de sem-teto e ocupam o prédio de um antigo hotel abandonado em São Paulo. Mediante a organização para uma boa convivência, as ameaças recorrentes de despejo fazem com que eles lidem com seus dramas pessoais e de convivência, para que juntos possam se ajudar e superar os obstáculos que lhes são apresentados.
A direção de Eliane Caffé para essa ficção nos lembra muita outra produção que ela assinou. Em 2003, ela lançou “Narradores de Javé”, que também misturava personagens reais a outros ficcionais para contar a trajetória de uma vila, no interior, que seria destruída pela construção de uma usina hidrelétrica. Em ambos os trabalhos Caffé consegue construir uma narrativa interessante e socialmente questionadora, que nos serve de reflexão em tempos de ódio e omissão.
O roteiro estruturado pela diretora, ao lado de Luis Alberto de Abreu e Inês Figueiró, dá um grande foco aos refugiados que são “acolhidos” pelo governo, mas quando chegam ao Brasil não possuem nenhum incentivo estatal para se estabelecerem, aprenderem a língua e buscarem uma vida digna. Assim, eles se veem marginalizados e se juntam às pessoas dali, pois são acolhidos e conseguem a ajuda delas, que são socialmente excluídas, para se estruturarem aos poucos no país.
Entre os personagens ficcionais estão Apolo, vivido por José Dumont, e Gilda, vivida por Suely Franco. Dumont serve de ponte para conectar as muitas culturas presentes no hotel. Ele monta uma cia de teatro onde os moradores possam representar suas próprias identidades culturais, trocar experiências e ali é apresentado um dos momentos mais emblemáticos do longa. Suely, por sua vez, vem carregada de enigmas de sua espevitada Gilda, que aos poucos vamos nos descobre a profundidade de sua personagem, assim como o peso das memórias afetivas, que podem nos transformar como humanos.
Mais do que uma estrutura questionadora, que levante tabus sociais e humanize aqueles que são socialmente excluídos, a montagem do longa é sem dúvida sua melhor proeza. Como já havíamos falado, realizar juntas as estruturas ficcional e documental ao mesmo tempo é um trabalho complicado e requer um trabalho clínico para dar veracidade a toda narrativa. Mesmo tendo pequenos problemas de ritmo, o trabalho de Márcio Hashimoto Soares é extraordinário.
“Era o Hotel Cambridge” não é nenhuma obra de apego pessoal. Ela transporta sua visão para algo que nos faz calar. Existe uma urgência de se questionar o que fazemos de bom para nós e para aqueles que nos rodeiam. Exemplifica o ódio ao desconhecido que julgamos sem conhecer, estabelecendo um pré-conceito. Mais do que um longa, o filme é um retrato vivo de alguns dos acontecimentos sociais atuais e recorrentes, no qual escolhemos fechar os olhos e ficar calados. Um banho de realidade feito pelo ótimo cinema nacional.
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