Encerrou no último final de semana, com direito a fila de espera, a temporada de um espetáculo que é um verdadeiro deleite para amantes da boa literatura. O espetáculo instalação “Êxtase Anotado” fez temporada no teatro Sesc Copacabana e narra de forma diferenciada as vivências femininas em uma sociedade opressiva (mesmo para as privilegiadas), tendo como ponto de partida a tradução da obra Bliss de Katherine Mansfield.
O conto escrito em 1918 conta com tato e alguma dose de ironia o universo feminino a partir de uma personagem de vida abastada, bem casada, com uma linda filha e ótimos amigos. Ao longo da narrativa há uma riqueza de detalhes que permeiam os sentimentos (dos mais densos aos mais corriqueiros) da protagonista. Mostrando como mesmo em pequenas doses a experiência social pode podar sentimentos genuínos. Mansfield tornou-se referência para escritoras de diversas gerações.

O interessante é que o espetáculo não se baseia na obra em si, mas sim na experiência da tradução desta. Em 1981 (sessenta e três anos depois do lançamento da texto original) a poeta Ana Cristina Cesar se aventura nesta tradução como trabalho de conclusão de seu curso de mestrado. E neste projeto tão significativo Ana Cristina divide com os leitores questões que envolvem o ofício, em notas de rodapé. Neles ela explica certas escolhas e questões culturais que agregam grande valor a obra e mostram como é delicada a escolha das palavras corretas ao se perpetuar uma ideia de outra mente criativa. O resultado de seu trabalho é um livro curto com oitenta notas de rodapé.
E é sobre essas notas de rodapé em que a proposta cênica se debruça. Toda a atmosfera criada gira em torno das inquietações de Ana em seu processo de tradução que também se mostra extremamente criativo. As duas atrizes em cena alternam suas atuações entre os personagens da tradutora, as personagens da obra e, ao que parece em dados momentos, apenas boas amantes da obra.

Todo o contexto proposto é intimista. Da sala organizada em arena com espaço restrito, às interações entre atrizes e plateia: tudo cria uma atmosfera próxima e de comunicação. E com essa relação quase que de confiança, as duas propõem uma experiência sensorial interessante.
O cenário localizado no meio das cadeiras da plateia tem uma mesa comprida que além de louças é repleta de plantas coração, alguns livros e pequenas luminárias. Este espaço se inspira no conceito de Cells de Louise Bourgeois e na experiência de Helio Oiticica. E este é o lugar onde são experimentados pequenos trechos do conto, são discutidas algumas opções de tradução e também trazidos traços culturais ingleses.
Uma outra dimensão (talvez a mais interessante) é a sonora. Dentro de uma pegada imersiva atrizes e público ouvem a áudio narração da obra feita por um time de peso que conta (além das atrizes) com Alamo Facó, Branca Messina, Drica Moraes, Ismar Tirelli Neto, Lola Sanchez e Matheus Solano. A utilização da tecnologia Dolby Atmos – que faz o som não ter somente uma saída – cria a sensação de participação dentro das ações descritas. A iluminação baixa na maior parte do espetáculo reforça a noção íntima, mas ao se alternar com outras propostas, alteram a percepção da experiência, intensificando a ideia de imersão.
O espetáculo tem, de forma geral, uma abordagem bastante diferente do usual sendo uma experiência também ímpar. A abordagem literária “fora da caixinha” propõe novos caminhos ao estado da arte.
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