Enquanto o sol se põe, os indígenas do povo Xavante entoam cânticos na cerimônia de fortalecimento espiritual dos homens da aldeia. Vozes em uníssono também clamam por bênção durante a celebração do Círio de Nazaré, os fiéis, emocionados, cantam o hino e erguem suas mãos aos céus em busca de graça. Mãos que, da mesma forma, podem jogar os búzios e interpretar as mensagens transmitidas pelos Orixás.
Assim é a dinâmica religiosa no Brasil: complexa, heterogênea, resultado de séculos de encontros culturais determinantes para a formação nacional do país. Desvendá-la não é simples, por isso é no mínimo admirável a profundidade do mergulho feito por “Híbridos: Os Espíritos do Brasil”, documentário concebido por Priscilla Telmon e Vincent Moon, que faz com que as imagens do misticismo brasileiro falem por si e nos contem sobre os mistérios que carregam.
Bebendo na fonte do filme etnográfico e do cine-transe de Jean Rouch – um dos principais nomes na história do cinema documentário, que acreditava na produção cinematográfica quase como uma experiência extra-corpórea –, a dupla de cineastas franceses passou três anos em expedição pelo Brasil a fim de registrar as manifestações religiosas locais. Não há exposição, narração em off, entrevistas ou trilha sonora, há apenas os rituais em trânsito, unidos através de suas semelhanças.
Para sustentar essa estética, a perícia da direção e da montagem é crucial. Criando um fio condutor entre os registros, a narrativa nos apresenta uma coleção de cultos díspares, alguns, inclusive, socialmente conflitantes, mas que quando colocados lado a lado mostram-se mais afins do que podíamos imaginar. Tal lógica é estabelecida através das transições, os raccords: as mãos que no catolicismo louvam, no espiritismo transmitem energia através do passe, no candomblé leem os búzios; a incorporação que na religião evangélica tem contornos demoníacos, na umbanda pode representar a canalização de divindades; os psicotrópicos que no Santo Daime são uma ferramenta de acesso a outro plano astral, podem ser usados em rituais de cura em aldeias no Xingu.
A reflexão sobre a religiosidade brasileira não se limita às cerimônias de cada círculo, mas como de tão enraizada, ela se manifesta, às vezes despercebida, no cotidiano brasileiro. O Carnaval é a maior festa de rua do país e, por mais que se perca de vista, no calendário cristão é o período anterior à Quaresma, já nossa celebração do Ano Novo não se contenta em comemorar a chegada de um ciclo, mas é calcada em uma série de tradições religiosas como o uso do branco do candomblé e a entrega de oferendas a Iemanjá. Ambos são registrados no longa.
Para além das discussões, porém, há no documentário do casal de cineastas um desejo de fazer o espectador imergir. Não só o tema é transcendental, mas o seu processo de transformação em imagem cinematográfica. Investindo no ecstasy coletivo – tanto no dos personagens do filme, quanto no do público –, a produção inebria com seus cânticos, orações, tambores, barulhos do mar, da floresta, dos animais e até do silêncio. A câmera é intimista, nos coloca no centro dos ritos, mas ao mesmo tempo capta sua grandiosidade, um sentimento de algo que está além da nossa compreensão.
“A diferença não é uma restrição, é uma adição”, Rouch dizia. Através de “Híbridos: Os Espíritos do Brasil”, Moon e Telmon parecem também compreender esse pensamento. Talvez sem essa noção, sequer seria possível conceber o projeto. Como compreender a matriz religiosa brasileira se não assumindo sua heterogeneidade? Pode-se celebrar, então, porque não é o que acontece. Experiência audiovisual vigorosa, o filme torna-se ferramenta à mão para quem se desafia a encarar os mistérios da espiritualidade e do sobrenatural no Brasil.
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Boa tarde a todos!
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