A volta da ovelha negra
Reuniões familiares em datas tradicionais sempre dão margem a discussões e mal-estar quando há questões mal resolvidas. A dramaturgia já explorou várias vezes situações tensas em festividades como Natal e Dia de Ação de Graças. O que poderia ser um clichê em “Krisha” surpreende positivamente, ainda mais se tratando de um jovem diretor estreante, Trey Edward Shults, que também atua no filme.
Krisha (Krisha Fairchild) é a ovelha negra da família: tem mais de sessenta anos e um histórico de alcoolismo e uso abusivo de remédios. Por conta de seu estilo de vida e de suas tentativas de recuperar a sobriedade, ficou afastada da família durante anos, deixando inclusive seu filho Trey (vivido pelo diretor) aos cuidados da irmã Robyn (Robyn Fairchild). Ele agora é um jovem universitário que não se mostra muito receptivo às suas tentativas de reaproximação.
Em apenas nove dias, Shults rodou o filme em Houston, na casa de sua mãe (Robyn Fairchild, que atua como sua tia) e usou seus familiares como atores no filme, mantendo seus nomes verdadeiros. Uma das poucas exceções é Bill Wise, que interpreta Doyle, um dos cunhados de Krisha. Seu trabalho se destaca pela acidez que imprimiu ao personagem, tanto em seu senso de humor quanto em sua franqueza. A protagonista, atriz profissional pouco conhecida, é tia de Tray na vida real. Sua performance é impactante desde a abertura do longa, quando seu rosto envelhecido e angustiado ocupa a tela e seu olhar intenso nos deixa intrigados a respeito dessa mulher e da história a ser contada.
O roteiro e a direção deixam claro que Krisha não pertence àquele universo. Ao chegar, é recebida até de forma calorosa, mas ao mesmo tempo é possível sentir que há um esforço por parte da família para tratá-la assim e aparentar naturalidade. Sente-se a mudança de energia no ambiente com a entrada da personagem. Mas, passados os cumprimentos, a casa cheia volta a fervilhar à sua maneira, com os jovens que apostam queda de braço, o casal que discute (pacificamente) seus rituais amorosos, o barulho da televisão e o circular dos cachorros no pátio. Todas essas cenas retratam o pertencimento de pessoas a um espaço em que Krisha é o elemento destoante. Em seu quarto, ela remexe seus remédios que mantém em uma caixa trancada; na cozinha, ela corta ingredientes e retira vísceras de dentro do gigantesco peru que prometeu preparar para o Dia de Ação de Graças.
O ponto alto do filme, que faz com que esta não seja apenas mais uma história de familiar problemático voltando para casa num feriado, é o uso da câmera e da trilha sonora, além da edição. O rebuliço da casa é enfatizado com movimentos rápidos da câmera, que passeia pelo ambiente e também faz trajetos circulares que retratam o confuso estado emocional em que se encontra a protagonista. Tudo isso é reforçado pela trilha bastante impactante de Brian McOmber que dá a sensação de atordoamento. São muitas as variações de ritmo e movimento e tudo contribui para o desenrolar da ação, por exemplo, a câmera que se aproxima progressivamente para depois se afastar, ou a câmera lenta que mostra o interagir dos familiares, sob o ponto de vista de Krisha em um momento de grande vulnerabilidade. Há também momentos em que justamente a ausência de som proporciona força cênica. A alternância de cenas em que Krisha conversa com Doyle no jardim e prepara o peru na cozinha dão dinamismo ao filme e trazem o espectador para dentro da cabeça da personagem – acompanhamos a sua turbulência emocional bem de perto.
O longa ganhou o Prêmio John Cassavetes em 2016. Cassavetes, falecido em 1989, é considerado o pai do cinema independente nos Estados Unidos, realizando trabalhos autorais e de baixo orçamento. Depois de “Krisha“, Trey Edward Shults realizou o suspense “Ao cair da noite”, que será lançado no Brasil este mês.
Neuza Rodrigues
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