O mítico diretor polonês Krzysztof Kieślowski é conhecido por seu cinema poético, no qual a essência transborda em narrativas que fogem do habitual. Boa parte de suas obras são pautadas em personagens femininos fortes, que são o centro das suas tramas. Um de seus trabalhos mais conhecidos é a trilogia baseada nas cores da bandeira francesa e seus significados. Usou o lema liberdade, igualdade e fraternidade para contar a história de três mulheres francesas. Pretendemos reassistir os três filmes e escrever sobre eles aqui na Woo! magazine. O primeiro filme se chama, em seu título original, “Trois couleurs: Bleu” que no Brasil ficou “A Liberdade é Azul”, o que, convenhamos, soa bem mais poético.
“A Liberdade é Azul”, tem início com um acidente de carro em que morre um famoso compositor e sua filha pequena. No carro também estava a sua esposa Julie, que sobrevive. Depois de recuperada, Julie tenta se livrar da vida passada, a fim de esquecer seus entes queridos mortos. Coloca à venda a mansão em que viveram juntos e literalmente queima todos os seus pertences pessoais. Tenta destruir uma partitura inacabada que o compositor trabalhava (que era sobre a unificação europeia) e aluga um apartamento em uma área pouco valorizada de Paris.
São nos momentos onde Julie “destrói” sua vida passada que o cineasta imprime toda a sua genialidade como autor e esteta da sétima arte. Claro que a sua direção já constrói a personagem desde o momento em que ela se encontra no hospital. Todos os planos são de extremo sufoco; planos hiper fechados que a encaixotam. Quase uma prisão de dentro para fora da tela. Ainda no hospital ela passa a ser acossada pela cor azul do título. Seu rosto é inundado por uma luz azulada misteriosa que a acorda em certo momento e que, pela montagem proposta, a faz lembrar da tal composição musical incompleta. A partir daí, em vários momentos a música toma conta e o faz quando o azul está presente, como em objetos ou mesmo na iluminação.
Mesmo se estabelecendo na nova vida e tentando esquecer do passado, parece haver uma força que a leva de volta, essa força é caracterizada por situações que deixam o filme inquietante e são trabalhadas de forma genial pela construção do roteiro. Uma das cenas em questão é quando Julie é enquadrada boiando em uma piscina em posição fetal, tentando “afogar” a música que surge em sua cabeça e que nós expectadores também ouvimos. Quando ela mergulha, a música cessa. Tudo é feito em uma piscina, evidentemente, azul em sua extensão. A câmera também é um personagem, ela se move entre cômodos e confere instabilidade à trama enquadrando Julie sempre nos cantos. Há um plano sequência primoroso mostrando-a andando enquadrada do tronco para cima. A câmera não se mexe e sim Julie, que joga o corpo de uma extremidade a outra da tela, deixando o espectador atordoado. Todo o potencial narrativo e técnico do filme não seria suficiente se Krzysztof Kieślowski não contasse com o talento de uma jovem Juliete Binoche, que é extremamente competente em construir uma personagem confusa com os acontecimentos e, paradoxalmente, determinada em esquecê-los.
A obra foi lançada em 1993, o ano em que houve a construção do bloco dos países europeus e trata sutilmente dessa questão com a citada partitura inacabada feita para celebrar essa união. A Europa deu uma lição em juntar seus países e demonstrou que a liberdade que deu a seus cidadãos é bem mais benéfica do que isolá-los. O isolamento que Julie escolheu depois de uma tragédia é quebrado quando ela percebe que as memórias de seu marido e filha nunca serão apagadas e decide terminar a sinfonia da união. Ela se integra ao passado para enfim ganhar a liberdade. Por isso, saldemos a Europa e contemplemos Kieślowski.
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