Lançado especialmente para o streaming, com reprodução limitada nos cinemas, “Não Olhe para Cima” ou “Don’t Look Up” é a mais nova aposta da Netflix de sucesso instantâneo — não se fala de outro acontecimento na indústria de entretenimento na última semana. O público, a princípio talvez atraído pelo elenco de grande peso, há de ficar pela ácida trama satírica à modernidade, ao passo que não irá tardar para que se compadeça dos protagonistas, em um teatro do absurdo que o telespectador é também personagem.

Desde as primeiras divulgações, o filme conseguiu aproveitar bem o buzz que veio, entre outros, pela comparação estabelecida entre a presidente desse EUA paralelo, Janie Orlean, interpretada por Meryl Streep, e Donald Trump — e os recortes possíveis desse paradigma não são poucos. Há de se adiantar que embora essa seja a referência de mundo mais escrachada, “Não Olhe para Cima” chega a ser literal nas correlações propostas, algo que não é inerentemente ruim, mas no contexto oferece uma fábula moderna mastigada por completo para uma audiência que não necessariamente está interessada em ouvir.
Além da já mencionada diva de Hollywood, Meryl Streep, o elenco conta com outros nomes consagrados, como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Rob Morgan e Cate Blanchett, além do novo queridinho da indústria: Thimothée Chalamet. Nesse aspecto não há muito o que se discutir: dentro dos exageros que o roteiro exige, todos estão imperfectivelmente imersos na trama e conseguem dar credibilidade à sátira.
A participação de Ariana Grande também contribuiu para repercutir o filme, e marcaria o grande retorno da estrela na atuação desde sua época na Disney, que desde então fez várias pequenas participações especiais como si mesma e papéis curtos, dedicando-se à carreira musical. No entanto, mais uma vez Ariana tem um papel de menor destaque e em uma certa zona de conforto, no qual se mostrou, entretanto, muito competente, inclusive sendo possível cotada para indicação a uma estatueta de melhor canção original referente à faixa homônima ao longa.
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Embora seja vendido com comédia como um de seus gêneros, há pouco, senão nada, para se rir nas quase duas horas e meia de “Não Olhe para Cima”, que nessa premissa apocalíptica tenta alertar que “o fim do mundo não é engraçado” — sobre a manipulação midiática, cultura de alienação em massa, valorização do dinheiro sobre a vida e outros, em subtramas que aos poucos vão construindo uma narrativa de maneira muito eficiente, capaz de devorar o telespectador no sentimento de impotência — mesmo que algumas tramas sejam apressadas e/ou mal exploradas. As críticas, ainda que bem amarradas, possuem algo de superficial e fácil percepção, não inventando a roda mas retomando uma mensagem importante que há de ser discutida, com suas devidas concessões.
Uma antiprofecia autorrealizável?
Fazendo uma (aparente) breve digressão, há pouco mais de 100 anos, por acaso Monteiro Lobato publicava “A propósito da exposição Malfatti” n’O Estado de São Paulo, onde teceria duras críticas à exposição de Anita Malfatti e o que chamava de “psicose” e “produto de cérebros transtornados a arte moderna da artista — tal crítica, aliás, foi propulsor para a Semana da Arte Moderna, em 22. Décadas mais tarde seria Portinari que produziria o quadro “Os Retirantes” e afetaria o público com o horror de uma família devastada pela fome e miséria.
É de se pensar que se uma vez a arte moderna foi uma vez um farol do pensamento alternativo, ela também foi aderida pela classe dominante, tornou-se produto e perdeu o impacto e a energia iconoclasta. Colocando de outra modo, quando os alvos do direcionamento crítico aderiram as expressões modernistas, e essas foram incorporadas como parte da alta cultura, o que antes era chocante aos poucos vai dando lugar a apatia do cotidiano e uma destruição pela autoironia, e isso vale para o anticapitalismo. Novamente simplificando: ao passo que maldiz a influência dos bilionários no poder e sua utilidade no mundo, “Don’t Look Up” é também produto de uma indústria cinematográfica multibilionária e está longe de ser uma reflexão profunda sobre temas já amplamente discutidos em outras mídias, quiçá de forma mais bem trabalhada: “Parasita” (Bong Joon Ho), “Pure Heroin” (Lorde), “O conto de Aia” (Margaret Atwood) ou até “Vale Tudo”, de Gilberto Braga.
Há duas espécies de artistas. […] A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
LOBATO, Monteiro. O Estado de S. Paulo, 20 de dez. de 1917.
Em retrospecto, “Não Olhe para Cima” promete e entrega grandes atuações, com um elenco competente e um enredo coeso dentro do absurdo que se propõe — a tal “suspensão de descrença” — e uma sátira política interessante, porém longe de ser inovadora ou sutil. Impressiona nos efeitos e consegue prender na telinha a audiência em uma profunda sensação de angústia e impotência do início ao fim, sobretudo para o contexto que foi produzida. As percepções do coletivo mudam com o tempo, só ele dirá com certeza o veredito, mas para os entusiastas ou não, “Don’t Look Up” é uma dessas obras muito particulares sobre um período da história.

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