O Teatro Cacilda Becker recebeu, de 18 e 21 de maio, o grupo Cemitério de Automóveis, que já havia se apresentado anteriormente no Teatro Cemitério de Automóveis, de 9 a 17 do mesmo mês. Com texto e direção de Mário Bortolotto, o grupo encenou a “Notícias de Naufrágios”, uma peça que desenvolve um interessante drama familiar sobre um homem que abandona a esposa e a filha e retorna cerca de vinte anos depois.
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De modo geral, a premissa e uma parcela significativa da peça lembram a obra Odisseia, de Homero, cujos versos utilizaremos para desenvolver essa parte inicial:
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Não, pereceram devido à sua loucura […]
(HOMERO; Odisseia; p. 119)
Se na obra de Homero, Ulisses/Odisseu abandona o filho e a esposa para lutar na famosa Guerra de Tróia, regressando a um lar caótico vinte anos depois, podemos assumir o protagonista da peça como um Ulisses/Odisseu moderno, não apenas pela semelhança da situação, mas também pelo que ele foi buscar ao sair de casa: a si próprio.
O mais interessante é que o protagonista possui pouco tempo de palco e, mesmo quando aparece, suas falas são escassas, respondendo uma pergunta ou outra dos demais personagens, de maneira esquiva, às vezes com um sonoro “eu não sei”. No entanto, não demonstra remorso, sinalizando que a busca interior que fora procurar não foi bem-sucedida. Em suas falas, descobrimos que ele viajou para os Estados Unidos, América Central e alguns países da América do Sul, conhecendo diversas pessoas e culturas, e teve um filho, que também abandonou, entre outros eventos.
A temática central da peça é a ausência e o que ela revela da nossa relação com os outros e com nós mesmos. Assim, o regresso do protagonista à casa/cidade mostra-se mais interessante nos outros personagens, seus antigos amigos, cujos diálogos nos revelam seres angustiados com suas próprias vidas, cujas relações com ele não são mais as mesmas, devido a essa ausência. O retorno do protagonista desorganiza as identidades e a percepção de si e de seus desejos, algo que fica explícito nos diálogos.
A peça ganha uma nova camada de significação a partir do nome do protagonista: Fausto. “Doutor Fausto” é o nome de um personagem mitológico do folclore medieval alemão, popularizado pelo clássico texto de Goethe, que narra a história de um médico que fez um pacto com o demônio Mefistófeles, adquirindo conhecimento em troca de sua servidão, assim como a vida eterna pela sujeição aos caprichos do demônio.
No contexto da peça, é como se o Fausto goethiano estivesse na Odisseia homérica nos dias de hoje, levando em consideração que a peça se passa após os anos 2000. Dessa forma, a pergunta que fazemos pode ser explicitada da seguinte maneira: Qual é o pacto fáustico que a peça nos propõe?
O Fausto odisseico de Bortolotto, ao alterar a percepção que os personagens têm de si mesmos ao regressar, transforma todas as relações entre os demais personagens.
Por exemplo, o público conhece um casal em que o Marido se sente superior a Fausto devido à estabilidade que possui em sua vida, pelo casamento, por frequentar a religião e por ser patriota. A Esposa é uma mulher que se acomodou no casamento, não ama mais o marido e fica subentendido que desejava ter saído da cidade e seguido outros caminhos. Quando Fausto os visita, o Marido não sabe o que oferecer, pois não conhece o que tem ou não em sua casa, demonstrando focar em parecer do que em ser, ao contrário da Esposa. Enquanto ele age de forma arrogante, explicitamente julgando Fausto por ter ido embora da cidade tendo deixado a esposa e a filha, Fausto não responde de maneira muito significativa. Em dado momento do diálogo, é trazido à tona de que a Esposa não pode ter filhos, e Fausto se compadece dela, estabelecendo uma conversa. Esse contraste inverte discursivamente a cena, de modo que podemos inferir que Fausto consegue ser superior ao Marido que o julga, devido à empatia, como se na interação entre ele e a esposa do amigo houvesse sido dito algo como: Eu te entendo.
Outro momento interessante da peça é a relação entre um Pai e um Filho que abrem a peça com um diálogo um tanto vazio, em que não há respeito entre eles, mas cujas aparições nos fazem questionar como seria se Fausto não tivesse saído da cidade. De certa forma, na relação do Pai com Fausto, uma vez que eram velhos amigos e viveram aventuras típicas de adolescentes em uma cidade do interior, faz a conversa entre eles depois de vinte anos rememorar esses acontecimentos e exibe como a idade vai influenciando nossas escolhas.
O Filho, por sua vez, foi criado pelo Pai, do jeito que pôde, pois a mãe os abandonou. Assim, nas falas do Filho, é sempre apontado como o Pai não o criou bem, mas pelo menos o criou. A temática da ausência surge na figura da mãe, e as falas com palavrões vão articulando o respeito e falta de respeito. No final da peça, descobrimos que o Filho admira no Pai a liberdade que lhe foi ensinada.
Por fim, a filha de Fausto tem poucas aparições e, assim como Telêmaco na Odisseia, busca descobrir quem, no sentido de personalidade, é o seu pai. Nos instantes finais da peça, quando ela vai visitar aquele casal que não podia ter filhos logo após conhecer seu pai – não vemos no palco o pai e a filha se encontrando –, o Marido pergunta: “Você está frustrada?”, ao que ela responde: “Não”. Isso ilustra como a peça trabalha a lacuna/ausência, pois ela gera conflitos que não são conflitos, apenas a vida como ela é.
Quanto ao cenário, a peça se desenrola em uma zona crepuscular, pois o cenário é tomado pelo breu e a iluminação surge apenas com um canhão de luz nos personagens. Quando eles estão em diálogo ou em conflito, há um canhão em cada um; quando concordam ou pensam parecido sobre algo, compartilham a mesma luz. O próprio caminho que percorrem no palco é marcado pela iluminação. As luzes guiam, conectam e separam todos os personagens na peça. Você vê, mas não vê: é uma lacuna visual.
Em relação a temática, os 70 minutos da peça são suficientes para reconhecer os medos, incertezas e angústias da condição humana. Fausto voltou após vinte anos, “Muitos foram os povos cujas cidades observou,/cujos espíritos conheceu”, mas não é bem-sucedido a partir dos olhos de seus amigos. A peça propõe, sobretudo, que nem tudo na vida tem resposta, inclusive, nossas identidades e desejos. A vida é apenas o que é: uma constante zona de indeterminação que nos chama à ação ou não-ação, mas que nos obriga a atravessá-la. Fausto a atravessa com coragem.
Por fim, acreditamos que a resposta final à pergunta sobre o pacto fáustico que abordamos acima parece soar como a liberdade de ser quem se é sem lidar com as expectativas depositadas em nós sobre quem devemos ser.
HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. Tradução de Frederico Lourenço.


Letrólogo em formação e um apaixonado pelas artes, em especial a Literatura e o Teatro! Marvete de carteirinha, leitor de livros clássicos e duvidosos, amante declarado de teatros populares, cantor de chuveiro dos musicais da Broadway, maior visitante de exposições de SP e leitor constante de HQs de super-herois.
