Assistir a “O Castelo de Vidro” é ter a estranha sensação de estar vendo um filme lançado na época errada. Reconstituindo uma história real, a cinebiografia escrita e dirigida por Destin Daniel Cretton tem cara de Oscar e poderia muito bem estar entre os títulos que disputam a estatueta e que lotam as salas de cinema em fevereiro, semanas antes da premiação. Se ele entrará ou não na corrida ainda não dá para saber, mas é certo que como vários esforços do gênero, muitos deles reconhecidos pela academia, o longa desaponta ao endossar acontecimentos factuais com cacoetes dramáticos de Hollywood.
Adaptado do livro de memórias da jornalista Jeannette Walls, best-seller quando foi lançado em 2005, o projeto traz para as telas a vida nada convencional que a colunista de fofocas levou ao lado dos pais e dos irmãos durante sua infância. Coube a Brie Larson encarnar Jeannette, que no final da década de 80, de onde parte a trama, já era reconhecida por seu trabalho, caminhava com naturalidade entre as figuras da classe alta de Nova Iorque e estava prestes a se casar com um assessor financeiro (Max Greenfield).
O problema é que ao contrário do que ela contava aos clientes do noivo, seu pai, Rex (Woody Harrelson), não era um engenheiro que trabalha na extração de gás betuminoso, mas sim um homem de espírito livre morando com a esposa, Rose Mary (Naomi Watts), em um prédio abandonado na cidade. Informação que não é novidade nenhuma para ela: era assim que sua família vivia quando era criança.
Pulando de casa em casa, sem educação formal, vivendo em lugares inóspitos, sem gás ou energia elétrica, sem dinheiro para sequer comprar comida foi o modo como a jornalista cresceu com os pais, dois sonhadores que acreditavam que era um desperdício de tempo viver a vida de um jeito tradicional. Só que se por um lado não seguir regras pode parecer divertido, por outro, a imposição desse estilo de vida trouxe cicatrizes – emocionais e físicas – para seus quatro filhos.
Quase um exemplo real da família atípica de “Capitão Fantástico” – “quase” porque o caminho que os Walls seguem é mais tortuoso e traumático –, a história de Jeannette é fora do comum, mas por mais que inspire sensibilidade, nas telas de cinema foi pintada com as cores do convencional.
Antes de entrar nessa questão, é importante esclarecer: há delicadeza. Cretton, enquanto roteirista, é suficientemente inteligente para fazer com que o filme não caia no melodrama barato e, como diretor, é suave ao transformar os conflitos da protagonista em imagem cinematográfica. Apostando em uma estrutura de flashbacks muito bem costurada, o cineasta, através de raccords bem elaborados, transita com naturalidade entre os tempos. Com a mesma posição da protagonista em planos diferentes a vemos rejuvenescer e com um simples arremesso de um par de sapatos em uma mala nos transporta do presente ao passado.
Sofisticação que também está na forma como ele quebra a expectativa com o uso de planos gerais. Os primeiros quadros da produção, que acompanham a narração em off de Woody Harrelson, são planos estáticos de uma região campestre levando-nos a crer que os personagens vivem ali. “Burgueses da cidade moram em apartamentos elegantes, mas o ar é tão poluído que não conseguem ver as estrelas. Nós estaríamos loucos de trocar de lugar com qualquer um deles”, ouvimos a voz de Rex dizer. Só que o corte seguinte não leva mais ao campo, mas sim a uma visão noturna dos prédios de Nova Iorque; é onde a jornalista está, na contramão dos valores paternos.
Porém, mesmo com suas qualidades, o filme se sabota. O material de origem tem sua força, mas se esvazia quando o roteiro cria para ele arcos dramáticos que só poderiam ter saído, vejam bem, do cinema.
Que os acontecimentos principais aconteceram de verdade não há dúvidas, mas o longa investe em situações para desenvolver a história que já se tornaram chavões. Se você já viu algum filme nos últimos 50 anos, provavelmente já deu de cara com uma cena em que a mocinha dramaticamente abandona um evento para encarar um conflito que até então ela não estava disposta a enfrentar. Possível também que você já tenha assistido a um momento de última conversa conciliatória antes de um dos personagens morrer. Aqui esses recursos desgastados aparecem mais do que deveriam, mas mesmo que eles realmente tenham acontecido, outros caminhos podiam ser usados para que eles não soassem tão banais.
Em uma constante sensação de corda bamba, é difícil não falar como ainda que o esforço de Cretton como roteirista – que assina o script ao lado de Andrew Lanham – torne essa jornada incomum em uma narrativa previsível, ele surpreendentemente consegue injetar profundidade a seus personagens. O sucesso talvez venha também da escolha de elenco: Brie Larson encarna bem uma mulher que se domesticou para passar despercebida, mas que mesmo que ela tente, sua real natureza é inequívoca; Harrelson às vezes se rende demais ao lado lunático de seu personagem, mas consegue mostrar que por trás do olhar maluco do patriarca há melancolia e insegurança. Já Naomi Watts é a mais prejudicada, pois mesmo que sua personagem oscile entre o delírio e o medo da não dar o suporte devido aos filhos, suas intenções nunca ficam muito claras.
Referindo-se ao sonho de Rex que toda sua vida se dedicou a projetar uma casa de vidro, a qual nunca saiu do papel, “O Castelo de Vidro” é irregular. Preocupado demais em transformar a vida de Jeannette Walls em um produto palatável ao público, esquece que a vida pode virar filme, mas ela por si só não é dramaticamente conveniente como às vezes a arte faz parecer.
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