“Os Fantasmas de Ismael” é uma ode ao caos. Não é exatamente um flerte com o surreal e o dadaísta, mas o último projeto de Arnauld Desplechin, filme de abertura da 70ª edição do Festival de Cannes, é um emaranhado de gêneros, referências e técnicas, cuja confusão de seus nós manifesta um desejo de transgredir as formas tradicionais de narrativa cinematográfica. Se funciona ou não, aí é um caso à parte.
Em sua sétima parceria com o diretor, Mathieu Amalric volta a se chamar Ismael Vuillard, como seu personagem em “Reis e Rainhas” (2004). Só que dessa vez ele não é um músico planejando a fuga do hospício: o Ismael que, como o título sugere, está sendo atormentado é um cineasta famoso que ainda tenta se recuperar da morte da esposa Carlotta (Marion Cotillard), desaparecida há mais de duas décadas. Dividindo-se entre o bloqueio criativo que o impede de continuar seu filme sobre a vida do irmão diplomata (Louis Garrel), a preocupação que tem com o ex-sogro (László Szabó) e o namoro com Sylvie (Charlotte Gainsbourg), o homem um dia é surpreendido com a volta da antiga amada, o que trará um cataclisma para sua vida.
Pela premissa – e pelo primeiro ato do longa –, parece que o que vem pela frente é uma produção econômica que tentará fazer um estudo vigoroso da subjetividade dessas figuras. Entretanto, o desenvolvimento que Desplechin dá a ela, apesar de suas intenções estéticas, não poderia ser mais prolixo. Mais metafilme do que estudo de personagem, o projeto quer refletir sobre o processo de criação do artista e testar os limites da linguagem cinematográfica, porém acaba se perdendo no meio do caminho.
Ainda que consciente de seus artifícios, o roteiro, assinado pelo cineasta francês ao lado de Julie Peyr e Léa Mysius, quer tanto brincar com seu tom que acaba com nenhum. Sai do drama, cai no melodrama, em um momento é suspense, em outro humor negro. Ideia audaciosa, mas executada com tão pouca sutileza – as trocas de gênero são tão desarranjadas e súbitas – que servem mais como obstáculo para a compreensão de outros elementos postos por ele, como o desenvolvimento dos próprios protagonistas.
Detalhe que não fica melhor diante dos universo de excessos cometidos pelo script. Atirando para todos os lados, “Os Fantasmas de Ismael” aposta, sem muita lógica, em voice-overs, flashbacks e quebras da quarta barreira, além de fazer escolhas se não óbvias, como dar à mulher que volta dos mortos o mesmo nome de uma das personagens de “Vertigo” (1958) – com direito até a retrato pintado a óleo –, autoindulgentes, como estabelecer uma subtrama sem desenvolvê-la só porque ela faz referência a um evento de outro filme do diretor. Arnauld Desplechin faz questão de apontar que Ismael teve uma relação problemática com o filho adotivo, mas nunca a aprofunda; situação que estaria melhor explicada, de novo, em “Reis e Rainhas”.
Sua direção, na maior parte do tempo, também não ajuda. Ainda que ele acerte ao usar de forma elegante os enquadramento fechados para intensificar a noção de intimidade entre os personagens, o cineasta escorrega ao investir em determinados recursos arbitrariamente. Planos em íris – aqueles clássicos círculos pretos que costumavam abrir e fechar cenas nos filmes mudos – e transições em fade não só aparecem na tela sem nenhuma medida, como pouco comunicam.
Nem o elenco estrelado foi capaz de operar milagres. Amalric, Gainsbourg, Cotillard e Garrel têm a habitual qualidade – nesse caso o primeiro acaba beneficiado em relação aos outros –, mas acabam sabotados pela inconsistência do roteiro.
Falando muito sem no final das contas dizer nada – ou pelo menos nada demais –, “Os Fantasmas de Ismael” é mais um esforço narcisista do que uma experiência estética relevante. As ideias que quer subverter não são necessariamente originais e Desplechain não consegue dar o frescor que elas pedem. Sobra apenas o enfado.
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.
Sem comentários! Seja o primeiro.