Para iniciar a série de livros clássicos aqui na Woo! faremos uma viagem para Moçambique e conhecer um dos novos clássicos da literatura lusófona, o qual inclusive se tornou leitura obrigatória para a FUVEST nos próximos anos. De Luís Bernardo Honwana, esse é um crime do qual o leitor também tem as mãos cheias de sangue, afinal, “Nós matamos o cão tinhoso!”.
Esse artigo foi possibilitado por parceria com a plataforma de streaming de livros “Livroh“, da qual já falamos por aqui e possui um amplo (e em expansão) catálogo com livros nacionais, estrangeiros, em português, outros idiomas, ebooks, audiobooks, etc. Convidamos você a conhecer o serviço!
Por que clássicos?
Paradoxos, portanto, de todo lado, mostrando o conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela [a literatura] não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.
Antônio Candido, A literatura e a formação do homem (p. 85), 1999.
O que são clássicos e por que os ler? Essa não é de longe uma discussão recente, tampouco desconhecida, porém, não é desnecessário trazer à tona uma breve contextualização agora que a gente da Woo! decidiu fazer uma série tratando sobre.
Os clássicos já estão aí antes de nós— e provavelmente vão continuar com esse status depois que nossos netos morrerem — mas isso não significa que eles estão estáticos, parados no tempo. Como mudam os anos, mudam as pessoas e os olhares que se dão a eles, também conferindo outras camadas para as obras.
No mesmo sentido, esses livros não são um bloco sólido de metal: outros materiais podem se tornar clássicos com o tempo, a depender das escolhas para sua apreciação. Sim, estamos falando de política. Um clássico assim é considerado porque um grupo de pessoas disse que assim são — pessoas essas que têm influência e prestígio, e, apesar de resistências, o novo sempre vem.
Embora essa seja uma versão reduzida da história, é interessante pensar em quais são os clássicos dos novos tempos. Estamos enfim dando espaço para mulheres, LGBT, indígenas e aqueles tidos como proscritos, que sempre tiveram negada a sua versão da história.
Foi apenas em 2008 que o ensino de história indígena e afro-brasileira se tornou obrigatório no currículo das escolas do Brasil. Apenas em 2020 que o vestibular da maior universidade do país incluiu um livro de literatura lusófona fora do eixo Brasil-Portugal; era Mayombe, de Pepetela.
Para inaugurar essa seção do site com uma reflexão especial, escolhemos um livro que tão bem dialoga com essa questão. Ter Honwana na lista de 2023-2026 da FUVEST não é só um presente (pela qualidade da obra), mas uma esperança para aqueles que creem no papel humanizador da literatura.
O livro
“Nós matamos o cão tinhoso!” é um livro de contos publicado em 1964, em Moçambique, e produzido no período de aprisionamento de seu autor, Luís Bernardo Honwana, que lutou pela independência do país contra Portugal. A obra recebe o nome do primeiro conto, também o mais longo.
Sete são os contos na publicação original (“Nós matamos o cão tinhoso”, “Inventário de imóveis e jacentes”, “Dina”, “A velhota”, “Papá, Cobra e Eu”, “As mãos dos pretos”, “Nhinguitimo”), contudo, algumas edições, como a do Livroh/Kapulana, contam com um oitavo: “Rosita, até morrer”, inserção posterior.
Algumas coisas podem chamar a atenção do leitor brasileiro, a começar pela linguagem, cheia de termos aos quais não estamos familiarizados, com origem em idiomas do país. Esse, tal como o nosso brasileiro (cheio de africanismos e tupinismos), reflete a diversidade de povos forçados a se tornarem uma nação.
Escrever em português, língua do colonizador, e que não era falado pela maioria da população até 2007, representava no início da Revolução um marco importante, pois, apesar de todas as contradições, é a língua que unia todos aqueles povos sob a luta contra um inimigo em comum, uma narrativa que vai se repetir em outros escritores e países colonizados por Portugal.
Outro ponto que há de saltar aos olhos do leitor é a crueza da violência, mesmo quando atenuada por metáforas ou silêncios. Racismo, machismo, espetacularização da violência, homofobia; tudo através do fio condutor da violência colonial, e que Honwana tenta processar ao longo da produção do livro. Que o leitor não se engane: dadas suas diferenças, Moçambique está longe de ser a única ex-colônia portuguesa carregando esse fardo.
Análise
Não se pode falar de Nós matamos o cão tinhoso! sem a poderosa captura fotográfica de Honwana: das machambas, passando pelos musseques, o autor cria micro-universos ficcionais que são verdadeiros formigueiros explodindo de vida; sempre há algo acontecendo, e o leitor tem a posição privilegiada de acessar. Detalhe: não porque são ficcionais (pois são literatura) que não demonstrem uma postura crítica e reflitam uma visão de mundo do autor sobre a sociedade moçabicana colonial.
Falando no tão já mencionado colonialismo, deve-se dizer que há a presença no imaginário popular de uma leitura que assimila o Cão Tinhoso a ele, o “velho sistema”, e que busca explicar o conto através de um misterioso código que estaria nas entrelinhas.
Como assim? Para essa interpretação, o cão cheio de feridos representa a decadência dessa sociedade, o que ganharia alguma força pelos olhos do cão odiado serem azuis (remetendo ao europeu). Essa leitura, apesar de popular, não pode se sustentar como modo final de interpretação, pois, além de inconsistente, extrapola os limites daquilo que está no texto.
Essas opressões não são todas iguais, ao menos não se dão assim. Em Nhinguitimo, por exemplo, um dos fios que se desenvolvem na história está relacionado com a dificuldade do protagonista se expressar em português. Mas que português é esse? O português normativo europeu, pois, ainda que não seja sua língua nativa e se expresse compreensivelmente, seu falar vira chacota e motivo de ameaça por parte dos representantes do poder público local.
Colocando em outras palavras, cada protagonista encarna uma forma de violência — até mais — sem que isso seja uma relação de “x=1”, ou melhor dizendo, que as personagens sejam apenas símbolos, apenas metáforas, pois são muito mais complexas que isso.
Nós matamos o cão tinhoso discrimina sensivelmente as contradições dessa sociedade tão marcada pela violência, a necessidade de amadurecer precocemente, a passagem para a vida adulta como um despertar da consciência meio aos escombros da periferia do capital; o que conversa de forma direta com as origens marxistas do autor. Não se sai mais o mesmo após matar o cão tinhoso, incluindo o maior cúmplice e confidente do ato: o leitor.
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