Ser mulher é aterrorizante. Não é por menos que a experiência feminina é terreno fértil para o horror. Sexualidade, maternidade, amadurecimento, papéis de gênero alimentam clássicos como “Repulsa ao Sexo” (1965), “O Bebê de Rosemary” (1969), “Carrie – A Estranha” (1976), “Suspiria” (1977), a novas produções como “Babadook” (2014) e “A Bruxa” (2016). Além do mais, é do terror que vem o arquétipo de final girl, a protagonista que, muitas vezes, fortificada por sua pureza e virginalidade, enfrenta sozinha o grande mal.
Entretanto, a relação entre o feminino e os filmes de terror é contraditória: mesmo que figuras femininas, assombradas por seus dilemas, povoem seu imaginário, as histórias, em sua maioria esmagadoras, são concebidas por homens. Felizmente esse cenário está mudando. Junto com a onda de excelentes projetos do gênero que começou há uns três anos, diretoras e roteiristas vieram para mostrar que também sabem, e muito bem, assustar. Graças a nomes como Jennifer Kent, Ana Lily Armirpour, Karyn Kusama e Julia Ducournau, hoje temos os aclamados “Babadook” (2014), “Garota Sombria Caminha pela Noite” (2015), “O Convite” (2016) e “Grave” (2017).
Seguindo essa linha está “XX”, uma antologia de horror escrita e dirigida somente por mulheres. Jovancka Vuckovic, St. Vincent, Roxanne Benjamin e Karyn Kusama comandam curtas que exploram a fantasmagoria que embala a vivência feminina. Contos que são costurados pelo trabalho de animação em stop-motion de Sofia Carrillo, que com um sinistro quarto de bonecas media os dramas, soturnos, desse universo.
A trama gira em torno de quatro segmentos. Em “A Caixa”, acompanhamos a vida de Susan (Natalie Brown) uma mulher que vê a dinâmica de sua família virar de ponta cabeça depois que seu filho (Peter DaCunha) espia o conteúdo da caixa de presente de um estranho no metrô. Enquanto em “Festa de Aniversário”, Mary (Melanie Lynskey) para não estragar a celebração do aniversário da filha (Sanai Victoria) tem que se livrar do cadáver do seu marido que cometeu suicídio.
Já no terceiro curta, “Não Caia”, seguimos a viagem de um grupo de jovens ao deserto, porém eles terão que tentar sobreviver quando a frágil Gretchen (Breeda Wool) é possuída por uma entidade maligna. Para encerrar, “Seu Único Filho Vivo”, conta história de Cora (Christina Kirk), uma mãe solteira que no aniversário de 18 anos de seu filho (Kylle Allen) tem que lidar não só com seu comportamento violento, mas com a vontade do menino de conhecer o pai.
Bem, não restam dúvidas de que nada melhor do que mulheres para expor os assombros de sua própria existência, pena que isso não é garantia absoluta de sucesso. Competente em boa parte do tempo, o filme decepciona por só conseguir no máximo ser isso: competente. Irregular ao adotar a estrutura fragmentada de narrativa, “XX” sofre com o desequilíbrio entre as histórias que conta e sai prejudicado com o pouco impacto que a maioria delas causa.
Jovancka Vuckovic é feliz ao conduzir o segmento de abertura. Adaptando o conto homônimo de Jack Ketchum, a cineasta consegue construir uma tensão afiada através do incompreensível, porém acaba nos perdendo com seu desfecho anticlimático. Marcando a passagem o suspense com as cartelas dos dias das semanas, e planos plongeé de suntuosos pratos de comida, é impossível não sentir um arrepio ao assistir à mulher sendo comida viva em uma sequência de delírio, entretanto é proporcional o sentimento de decepção quando o mistério parece não ir para lugar algum.
Decepção já não é bem nome para o trabalho da cantora St. Vincent, uma de suas primeiras incursões no cinema. Concebendo ao lado de Roxanne Benjamin o roteiro de “Festa de Aniversário”, seu curta soa deslocado no contexto sombrio que a produção cria. Assim como o primeiro, ele mergulha na questão da maternidade, nos fardos depositados sobre a figura materna, porém sob a ótica do humor negro, do artificial, do kitsch. É clara a ideia de pesadelo, mas seu episódio só é absurdo, almodovariano, e não assusta. Parece que caiu de paraquedas, prejudicando a integridade da narrativa.
O fôlego só retoma com os dois últimos segmentos. Benjamin volta para contar a terceira história e é exemplar em seu exercício de gênero, o clássico cenário de jovens no meio nada à mercê de um perigo sobrenatural. Mostrando-se sólida tanto como diretora quanto como roteirista, seu curta é simples, contudo eficaz. Característica, que se repete no encerramento nas mãos de Karyn Kusama. Quase uma continuação de o “O Bebê de Rosemary”, “Seu Único Filho Vivo” é correto, de certo modo inquietante, mas, infelizmente, pouco memorável. Talvez seja porque contos sobre o anticristo sejam familiares demais e a abordagem da cineasta não traga nada muito novo. É apenas competente.
Nos detalhes, o longa também dá suas derrapadas. Um dos segredos de uma boa antologia está em como amarrar seus pedaços, só que nesta em particular, não há só um curta que destoa de forma grave dos outros, como falta uniformidade estética. Com descuido, entretítulos aparecem repetidos, sem o padrão estabelecido. Parece tolo, mas é o tipo de pormenor que denuncia descuido. Em contrapartida, as animações em stop-motion entre os segmentos são o grande destaque, uma perfeita síntese das trevas que existem no feminino.
Ousado na premissa, mas modesto na execução “XX” não entrega um material brilhante, mas é produto exemplar dessa nova fase que chega o gênero do terror. O importante é saber que, até para errar, realizadoras estão tendo mais oportunidades de mostrar seu trabalho. Viva essa nova era.
“XX” está disponível na Netflix.
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Gostei muito do seu texto! Vou assistir.
Que bom, Carmen! Assista e depois conta pra gente o que achou! 🙂