Travis Bickle não pede para Iris desviar o olhar no momento que executa o massacre na casa de prostituição em “Taxi Driver – Motorista de Taxi” (1976). A pré-adolescente assiste a tudo, caindo em prantos diante de tanta violência. Já Joe (Joaquin Phoenix), o protagonista de “You Were Never Really Here”, não faz o mesmo. Prestes a salvar uma garota nas mesmas condições da personagem vivida por Jodie Foster, o matador de aluguel pede para que ela feche os olhos.
A instabilidade e a selvageria o unem ao taxista misantropo de Martin Scorsese, porém a compaixão os separa. Ambiguidade fundamental no novo filme dirigido e escrito por Lynne Ramsey, um flerte com as convenções de gênero, mas que graças a minúcia e delicadeza de sua realizadora transforma-se em um eloquente estudo de personagem.
Joe é um ex-combatente e antigo agente do FBI que na vida acumulou traumas tanto em serviço quanto na sua infância ao conviver com o comportamento abusivo e violento do pai. Entre doses de antidepressivo e tentativas de suicídio, o homem, que mora com a mãe idosa (Judith Roberts), se sustenta com o dinheiro que ganha sendo assassino por encomenda de uma agência que resgata crianças desaparecidas. Em um de seus trabalhos, porém, ele é encarregado de encontrar Nina (Ekaterina Samsonov), a filha de um senador que está mantida em cativeiro em um prostíbulo, o que lhe traz consequências irreparáveis.
Mesmo com uma filmografia enxuta, Ramsey é lembrada pela sensibilidade de seu olhar cinematográfico. Seja pelos pequenos detalhes cheios de significado em “Ratcatcher” (1999), seja pelas importantes rimas visuais em “Precisamos Falar Sobre Kevin” (2011), a forma como ela constrói quadros é prestigiosa, o que permanece vivo em seu longa-metragem mais recente.
Habilidosa, a cineasta escocesa conta a história, inspirada no romance homônimo de Jonathan Ames, não através do excesso de exposição, mas sim das imagens. Não há explanação desnecessária; sabemos pela boca dos personagens o mínimo, o resto vemos. Mesmo com poucas palavras, logo a sequência inicial nos diz muito: o protagonista tenta se matar, queima fotos de crianças e uma bíblia, recolhe objetos – entre eles um martelo e um colar cujo pingente diz ‘Sandy’ – e depois anda pelos corredores de um motel. Neste último plano em particular, observamos apenas sua mão carregando uma sacola plástica e suas pernas em um caminhar lento, derrotado. Não avistamos seu rosto – e ainda sequer temos consciência de suas atividades –, no entanto entendemos exatamente como ele está se sentindo. Isso é o bom trabalho de um bom diretor.
Essas amostras interessantes não param por aí. Apostando em enquadramentos que dialoguem entre si, em determinados momentos a diretora consegue fazer, com inteligência, desde prenúncios da morte de personagens a estabelecer a dimensão do relacionamento entre eles. Um plano detalhe despretensioso de lenços de papel ensanguentados nos deixa um prévio aviso de que seu dono será assassinado, assim como um quadro caprichoso, mas que dura milésimos de segundo, de uma mesinha na cozinha com duas cadeiras vazias é importante para significar a ligação que irá surgir entre Joe e Nina nos instantes finais da exibição.
Ramsey nos prende na mente confusa de Joe. Transitando entre presente e passado através de flashbacks que nunca são explicados mais do que necessário pelo roteiro, montamos o quebra-cabeça que é a vida do protagonista, tentando desvendar as raízes de seu comportamento, a origem de sua ansiedade e desejo de morte. Por isso, é perspicaz que o projeto se encaixe na lógica de “crime movies”, ou até em seu subgênero informal de “hitman movies”, já que em muitos desses filmes pouco importa o desenvolvimentos dos personagens, mas sim o desenrolar da trama. Subvertendo essa norma, o longa se foca em dissecar seu assassino, assim o enredo está a serviço deste fim.
Trabalhando com os limites do gênero, a diretora se permite também trazer sua versão para os elementos comuns a ele como a violência. Dando-lhe o peso real, são pontuais as situações em que ela faz o espectador encarar de frente a brutalidade e quando o faz sabe o impacto que provoca; não é banal. Testemunhamos os atos violentos através do registro das câmeras de vigilância e de reflexos desformes em espelhos quebrados para poder sentir a gravidade quando eles nos são apresentados de frente, sem subterfúgios.
A atmosfera chega a ser sufocante. Além de seu clássico gosto para planos detalhe, fechados por natureza, a cineasta cria um clima opressivo ao encurralar o personagem principal em corredores, espremido no canto de quadros, refém de si mesmo. Sensação que se torna aguda com o vigoroso trabalho de design de som construído em torno de sua “memória sonora”, assombrando-nos com os ruídos relacionados aos traumas do protagonista. Recurso que fica ainda melhor ao se misturar a trilha composta por Jonny Greenwood, sintética, cacofônica e ameaçadora. O guitarrista do Radiohead também chamou a atenção este ano pela também fascinante original score de “Trama Fantasma” – inclusive concorreu ao Oscar nessa categoria.
Não há, entretanto, como pensar sobre “You Were Never Really Here” sem mencionar Joaquin Phoenix. Joe é uma pessoa quebrada, um homem que ao mesmo tempo que manifesta sua inquietação mental pela impulsividade e pela violência, é tenro, às vezes, por de baixo da barba desgrenhada e do visual desleixado, até doce – não é surpresa vê-lo em um segundo agredir um homem por tê-lo feito esperar além do horário combinado e em outro cantarolar com a mãe enquanto pole os talheres de prata da família. O ator encarna à vulnerabilidade do protagonista, cansaço e angústia expressos nos menores gestos.
Há sete anos, desde “Precisamos Falar Sobre Kevin”, Lynne Ramsey não nos trazia nada e agora é possível falar: como é bom tê-la de volta.
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