“As Boas Maneiras” não poderia ser uma obra mais complexa para se falar sobre. Exibida no Festival do Rio em 2017, chega apenas este ano aos cinemas e surpreende mesmo os que já gostavam e se atualizavam sobre o audiovisual brasileiro. Estamos tratando de um longa que é uma verdadeira fusão de diversos gêneros específicos. Hora estamos beirando o terror, em outra um suspense, em alguns momentos até comédia ou estudos de personagem. Fazer isso, no entanto, não é fácil e tudo soa altamente propício ao erro, como essas nuances são equilibradas na projeção? Não seria um projeto ambicioso?
O fato é de que tratamos, sim, de um filme bastante peculiar e, até certo ponto, pretensioso. Isso, por outro lado, não se torna um problema dada a abordagem próxima a da fábula que “As Boas Maneiras” adere, que permite o insólito roteiro se desenrolar sem ser tosco. Outro ponto que corrobora para isso é que a transição entre cenas mais leves e mais pesadas ocorre de forma natural, equilibrada. Ainda tratando da densa discussão que se pode retirar da trama, há elementos regionalistas e da cultura brasileira que são muito bem colocados aqui. Não são necessariamente o foco da narrativa, mas dão ótimos ares ao que vemos, como podemos citar a festa junina do fim como exemplo, mas também uma curta sequência de animação que entra pelo meio do filme. É esse tipo de questão que enriquece a obra e que funciona, de certo modo, como elemento alegórico também. Apesar de tudo e toda originalidade, “As Boas Maneiras” fala implicitamente de temas sociais, que são colocados através de sua aura surreal.
Ele, inclusive, começa até bastante sóbrio e concreto. É dado a entender que o filme vai ser sobre as duas mulheres que aparentemente seriam protagonistas em sua relação, mas também abarcando assuntos como família, solidão e classes sociais. Não que isso não se faça, mas é como um background para o que vai se desenrolando aos poucos. Nesse sentido, a direção é muito feliz ao optar por diversos planos-detalhe que vão mostrando elementos chave para que possamos entender o que se passa. As surpresas todas não são entregues de cara, porém pedaços delas já aparecem antes, ajudando na criação de um clima desconfortável, estranho.
Esse tipo de atmosfera, por outro lado, não poderia existir sem a trilha sonora que aqui denuncia e fomenta o estranhamento sentido pelo espectador. Sonoridades dissonantes e espelhadas em clássicos filmes de terror são ouvidas, ainda que não haja nada gráfico e explícito em tela com relação a isso. Ademais, a fotografia trabalha bem com jogo de iluminação e sombras que usa cores predominantes em cenas específicas para manipular a audiência. Assim, pode-se citar cenas com fortes tonalidades de azul e de amarelo que existem para que climas mais específicos sejam gerados. Assim, vamos da ternura a tensão em diferentes sequências.
Em suma, “As Boas Maneiras” é uma interessante e bem sucedida experimentação para o cinema brasileiro. Para citar algumas referências, é como se a primeira metade fosse uma espécie de “O Bebê de Rosemary” e a segunda se desenvolvesse como algum filme de Guilhermo Del Toro. É o tipo de obra que usa de excelentes inspirações para construir algo muito próprio e autoral, que esperamos que se veja mais nas produções nacionais. Até a computação gráfica que se faz presente, embora sem muito realismo, cumpre sua função e se beneficia disso. Prova, mais uma vez, que mais valem ideias e criatividade que o orçamento que se tenha em mãos.
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