A região do Porto da Cidade do Rio de Janeiro tem importância histórica para os cariocas. Não só por ser um local de interface com o resto do mundo no Brasil de outrora, mas por ser a porta de entrada de negros e negras escravizados. Essa história, que infelizmente não nos é devidamente contada na escola, foi recentemente reconhecida mundialmente quando o Cais do Valongo foi tombado como patrimônio histórico da humanidade. Por ele chegavam centenas de escravos que eram direcionados a uma casa de engorda/cura para que se recuperassem da difícil viagem, e então, eram vendidos na praça dos estivadores, um pouco mais adentro do continente.
A história desses indivíduos vendidos como objetos é tão naturalizada que esconde o despedaço de famílias, linhagens, corpos e mentes em uma lógica mercantil perversa, que aprendemos a ver como uma parte de nosso passado. No entanto, os reflexos da escravização dos negros não ficaram no passado… Eles são sentidos dia após dia nos ambientes de trabalho, lazer, educação. O racismo, a exclusão, a invisibilidade. Todas essas agruras ainda são parte do cotidiano nos dias de hoje. Não por menos, em momento político de tamanha polarização mundial, grupos extremistas destilam seus preconceitos, mostrando um retrato doente de uma sociedade que não faz sentido.
Em meio a esse contexto, por outro lado, negras e negros passam a se empoderar de sua história. Da história que remete aos momentos anteriores à brutalidade desses tempos de escravidão. E também da história que se conta de lá pra cá. Cada dia mais orgulhosos e próximos de suas ancestralidades, a luta por equidade pulsa forte e a cada hora mais inspiradora.
Nessa corrente positiva, um evento tratando de performance e ativismo negro foi desenvolvido no Centro Cultural Pequena África, no Jardim suspenso do Valongo (região portuária do Rio). Pausa! Aqui são necessárias algumas considerações: 1. Sobre o papel da performance como instrumento de luta social nós já falamos aqui, em uma entrevista incrível com Renata Sampaio (que inclusive é a responsável pela curadoria do EsteriotipAÇÃO); 2. O Centro Cultural Pequena África é um espaço pouquíssimo conhecido e de tamanha sua relevância, é parte de circuitos turísticos da região portuária. De responsabilidade da Prefeitura, mas gerido e cuidado pela Mãe Celina Rodrigues e outros colaboradores, o espaço se desenvolve de forma quase autônoma, e atualmente conta com programações culturais e cursos livres de desenho e capoeira, dentre outros. Locado na casa da guarda, onde os escravos eram cuidados antes de serem vendidos (do ouro lado da rua), fortalece e difunde atividades afrocentradas, o que (justamente por ser onde é) tem uma relevância simbólica, política e histórica.
“EsteriotipAÇÃO – Mulheres negras performam” foi um evento que trouxe ao público um compilado de performances de diferentes artistas em diferentes contextos, com o fio condutor do “papel da mulher negra na sociedade”, abordando questões históricas e atuais em dois dias de exibição. Os trabalhos foram apresentados em vídeos que no primeiro dia tratavam de estética, e no segundo de questões mais densas esfregando a crueldade por trás do discurso eurocêntrico enraizado na nossa sociedade.
O primeiro dia de exibições tratou de representatividade e os efeitos dela no sentimento de não reconhecimento das negras sobre sua (bela e incrível) estética. Em trabalhos que falavam sobre pele e cabelo, mostraram o quanto a questão impressa não é (e nem nunca foi) “só cabelo”. Como as referências diárias criam e reforçam padrões em detrimento de outros, e só que está no grupo dos “outros” entende a problemática por trás dessas violações diárias. O primeiro dia teve casa cheia, com a presença de muitas crianças. E nesse ponto é lindo pensar em uma geração crescendo mais consciente de sua história, de sua beleza, de sua responsabilidade enquanto etnia. Crescendo empoderadas!
O segundo dia abordou a invisibilidade da mulher negra, e o papel a ela atribuído ao longo dos séculos. Em performances que tratavam de diversos tipos de desrespeito: ora a privação de seu próprio corpo – no caso das escravas amas de leite – ora de sua dignidade – ao tratar da população de rua – e ainda da impossibilidade de exercer e se orgulhar de sua religião – por ter matriz africana. Em alguns casos falando da solidão da mulher negra (e do quanto, mesmo em microescala, é difícil se relacionar amorosamente quando não se atende ao padrão estético vigente), e em outros mostrando que este é o momento de se virar esse jogo e atear fogo às referências que negam a beleza e poder das negras. O segundo dia foi mais intimista, com um grupo de expectadores composto majoritariamente por mulheres negras (brasileiras e americanas) que ao final falaram de suas impressões (indigestas) sobre as performances, trocaram experiências e se despediram com muito axé. Leveza!
“EsteriotipAÇÃO” foi produzido por Millena Lizia, e apresentou os trabalhos de Ana Musidora, Juliana dos Santos, Millena Lizia, Monica Santana, Mulheres de Pedra, Nanda Canuta, Priscila Rezende, Renata Felinto, Renata Sampaio, Senzy Gargês e Val Souza.
O evento (bem como o Centro Cultural) foi um lugar de reconhecimento, de encontro com a história do nosso país sob a ótica de um grupo oprimido. O local da fala e do pertencimento. E aos poucos vão sendo plantadas as sementes de mulheres conscientes de sua força, beleza e poder!
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