Como comover o público com uma história que todos conhecem? Em 427 a.C., Sófocles aplacou a audiência do festival ateniense à Dionísio, apresentando a peça trágica “Édipo Rei”, a sua versão de um mito já bem conhecido por todos os cidadãos. Pelos relatos que se tem do original oral, o autor não fez grandes alterações no geral. Na verdade, o que lhe conferiu enorme prestígio foi como ele tornou a experiência dos espectadores mais prazerosa simplesmente por já estarem familiarizados com o enredo. Mas… como? Esse é o trabalho para o Foreshadowing.
Édipo Rei é a história de Édipo que, sem saber, assassina o antigo governante, seu pai, e se casa com a mãe, Jocasta. Ao longo da trama, o público é inundado com pistas que aludem ao destino trágico do tirano, sendo ele o último a se dar conta. O espectador então tem visão privilegiada, afinal, vê que tudo que o protagonista faz em sua ignorância o conduz ao fim funesto, em um clímax onde Jocasta se suicida e Édipo não aguenta e arranca os próprios olhos, apesar dos inúmeros avisos do profeta cego Tirésias. Soma-se a isso o elemento trágico clássico, isto é, só se pode denominar a tragédia se essa decorre do agenciamento das ações do personagem.
Édipo: “Crês tu que assim continuarás a falar, sem consequências?”
Tirésias: “Certamente! Se é que a verdade tenha alguma força!”
Édipo: “Sim! Ela a tem; mas não em teu proveito! Em tua boca, ela já se mostra fraca… Teus ouvidos e tua consciência estão fechados, como teus olhos.”
Ah, a doce ironia. — Édipo Rei, Domínio Público.
Popularizando-se como termo na contagem de histórias, o “Foreshadowing” nada mais é do que dicas sutis soltas no enredo, que funcionam como um prelúdio do que está por vir. É claro que, enquanto compondo a história, o autor não deseja que o espectador, desde o início, perceba pontos chaves que lhe tirariam a graça do momento de virada, o das revelações. Por isso, é preciso de muita inteligência na apresentação desses. As vantagens desse artifício são algumas, entre elas: I – elementos inseridos repentinamente não ficam sem explicação, como um Deus ex machina; II – dá motivos para os fãs consumirem mais vezes o material, em busca de referências ou simplesmente do prazer obtido pelo bom agenciamento das ações.
Esse mecanismo narrativo, tão velho quanto a roda, é encontrado em diversas histórias pelo mundo, mesmo antes da era da globalização, com intercâmbio mais fácil entre textos de origens bem diferentes. Não são poucas as obras de literatura, novelas, jogos e animações que fazem uso desse recurso. Os exemplos abaixo incluem spoilers óbvios sobre as obras tratadas, razão pela qual se aconselha cautela para os não familiarizados.
Death Note
Adaptado do mangá homônimo, “Death Note“ conta a história de Light Yagami, um colegial que encontra um caderno misterioso, caído do mundo dos deuses da morte, os Shinigami. Com esse caderno capaz de matar ao ter o nome escrito, Light jura fazer justiça e trazer paz ao mundo, matando todos os criminosos do planeta, tornando-se o “Deus do Novo Mundo”. Para lhe impedir, irá entrar em combates mentais contra o renomado detetive “L”, e, eventualmente, se juntando à equipe de buscas pelo assassino “Kira”, si próprio.
A representação imagética cristã se faz forte aqui. Ao passo que o cristianismo é a força predominante no ocidente, o número desses fiéis no Japão não ultrapassa 1,5%, de modo que o uso desse simbolismo apela a algo exótico e pouco conhecido ao público japonês. A cena que essa matéria pretende focar é crucial para compreender também o desfecho da obra, que deve, para muitos, ter passado despercebida.
Pouco antes de morrer, L limpa os pés de Yagami com água em uma escada. Essa interação é determinante porque é o anúncio derradeiro de sua morte, aludindo ao episódio bíblico em que Jesus lava os pés dos doze apóstolos antes de sua crucificação, incluindo de Judas Iscariotes, que o traiu. Essa poderia ser apenas uma curiosidade a mais na representação como figuras messiânicas da dupla de protagonistas, mas o traço fundamental a fazer a distinção é que Jesus lava os pés do traidor, consciente do que este está para fazer. Tal como o salvador da Bíblia, L sabe que Light é o assassino, mas não possui as provas para incriminá-lo, então oferece seu corpo como sacrifício e deixa registrado aos seus sucessores, Mello e Near, o necessário para finalizar esse jogo de gato e rato.
Elfen Lied
O foreshadowing pode se dar por outros artifícios, embora os “plot devices” utilizados não tenham necessariamente de servir para um foreshadowing, como, por exemplo, o Leitmotif.
Leitmotif, nada mais sendo do que uma música que representa um evento, personagem ou ponto da história. Em “Elfen Lied”, o final ambíguo abre margem para a interpretação que a heroína “Lucy”, alvejada por uma chuva de balas na cena anterior, sobreviveu, mas de uma maneira diferente. “Lilium”, abertura e tema de Lucy, uma adaptação contagiante em um misto de latim clássico e eclesiástico, toca sempre que a personagem precisa utilizar seus poderes, tal como em momentos dramáticos, como nos últimos segundos da animação — uma figura aparece na porta, a canção de repente para e um relógio quebrado volta a funcionar: Lucy, enquanto seu lado “mal” e com poderes, morreu. Porém, sua personalidade pura e inocente, “Nyu”, teria subsistido — ou, conforme a letra de Lilium, atravessado e sido aprovada no julgamento (probatus).
Beatus vir qui suffert tentationem, / Santo é o homem que persevera a tentação
Quoniam cum probatus fuerit accipiet coronam vitae / Pois, aprovado ao julgamento, receberá a coroa da vida
Trecho de “Lilium” performado por Kukimo Noma para Elfen Lied, retirado do original do católico em latim de Tiago 1:12; tradução própria.
Mas e se as cartas estivessem entregues na mesa desde a abertura?
Your Lie In April
Em Your Lie in April, Arima Kousei é um garoto de 14 anos, prodígio do piano, porém, que parou de tocar em decorrência de um trauma, após a morte de sua mãe. Tudo começa a mudar quando conhece a violinista Kaori Miyazono, que lhe retoma as cores e vontade de se apresentar.
Ocorre que a jovem heroína possui uma doença que a adoenta profundamente, algo que se descobre na metade da trama, sem antes entregar inúmeras pistas sutis do que está por vir: o agravamento de seu estado até a inevitável morte.
A primeira abertura do show, “Hikaru Nara” (Se brilharmos), performada por Goose House, é um banho de símbolos em overashadowing para quem assiste Shigatsu wa Kimi no Uso. Durante um minuto e meio, quase que pela música inteira, Kaori mantém os olhos fechados, abrindo-os somente para olhar para Kousei — pois, apesar de ter um encontro com seu amigo Watari, é só para ele que ela tem olhos. A violinista tenta se manter vívida até o fim, brincando, mas está enfraquecida. Além de passar o tempo todo “dormindo”, não consegue se manter em pé em um momento e cai, espalhando penas de uma ave branca. Eventualmente, Arima comenta como a amiga é leve, algo motivado pela doença, o que é representado pela garota em queda na abertura, além do momento que Kousei a pega nos braços, sendo comparada com uma pluma.
Somado a isso, Tsubaki, é pega entreolhando Kousei algumas vezes e chora relembrando seus momentos juntos, aludindo ao momento em que confessa seus sentimentos pelo rapaz. No entanto, assim como Watari, ela é uma observadora nessa história de amor, ficando sempre entre o casal de músicos nas cenas do quarteto. Ainda de olhos fechados, Kaori remete ao título do anime ao gesticular como quem pedisse um segredo, ou seja, “a sua mentira em abril”.
Ao fim, esse anime, que se passa todo na primavera japonesa, a ressaltar as cerejeiras desabrochando nos primeiros segundos, tem seu desfecho com a chegada do verão, anunciada pelos vagalumes, que, além de símbolos do amor, também representam as almas dos soldados mortos na guerra, uma alusão já utilizada em Hotaru no Haka (1988). Após isso, virão outras primaveras, e como Kousei bem marca:
A primavera está por vir, a estação em que te conheci; uma primavera sem você.
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