Impressionista como se propõe à primeira vista, “O amor em meio ao dissenso“ da Editora Appris aposta para um romance ultramoderno meio ao Brasil assolado pela pandemia do Covid-19. Por Newton Carneiro Primo, fomos conferir um pouco dessa trama que promove, no mínimo, um forte exercício de autorreflexão. Vem conferir nossa resenha, sem spoilers, como de costume!
O mundo depois de Tatiana
“Norwegian Wood” (Haruki Murakami), Mayrig (Henri Verneuil), “Mensagem” (Fernando Pessoa), “A Rosa de Versalhes” (Riyoko Ikeda) — cada um com sua devida identidade e reinterpretação histórica, são clássicos que contam sobre um passado que pode ainda produzir ecos no presente, mas não está efervescido pelo calor do momento.
Acompanhado senão do seu compasso moral em um tempo em que ouvir a própria consciência se torna ensurdecedor, como produzir arte sobre a história que está acontecendo precisamente agora? Em “O amor em meio ao dissenso”, cujo subtítulo é “Romance em uma Época de Extremos”, Newton Carneiro Primo aposta no clássico, e que muitos novatos parecem ignorar sem apresentar uma razoável contrapartida: o patético.
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Patético, aquilo que é carregado de emoções fortes, que provoca sentimento de piedade. Enquanto um protagonista de folhetim pode apelar para uma história cheia de humilhações no intuito de ganhar o público pela reviravolta, o que não necessariamente é um artifício simples, mas é hiperexplorado na ficção, no primeiro romance de Carneiro Primo, o autor investe em personagens complexos, onde quebrar a cara não é um produto de um mal sobrenatural, mas parte do processo de evolução individual.
Logo no primeiro capítulo o leitor é convidado a conhecer a família de Tatiana: chefe de família, recém-divorciada, e com dois filhos para cuidar. O frio climático do primeiro parágrafo conversa com os ares de inconciliabilidade entre mãe e a filha Simone, que não são apenas colocados no papel, mas demonstrados.
Em algum aceno para “O amor nos tempos do cólera” de García Márquez, o romance mostra o desgaste das relações em momentos de tribulação histórica, aqui com o verniz da Pandemia do Covid-19 e da pós-modernidade. E se repetimos tanto que (a título de exemplo) distopias não são sobre o futuro, mas sobre inseguranças do presente, há algo de reconfortante no exercício de imaginar uma saída para nossos problemas.
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Dissenso
O principal ponto a ser trazido ao debate é que os personagens não são estanques, e é possível observar, lentamente, uma mudança de comportamento por meio da chave do livro. O destaque vai para Tatiana, que como protagonista possui a licença para mudar de ideia, errar, ser humana, pois, no centro dos holofotes, o leitor é convidado a ver através de suas lentes (mesmo que por terceira pessoa) e com ela empatizar.
Isso não é uma constante durante toda a obra. Há um quê por vezes caricatural em certos personagens. Talvez você se pergunte se não é proposital que Simone e David aqui e ali soem insofríveis, mas ao fim do dia, Tatiana é parte da equação para trazer o conflito para um meio de campo. Enquanto roteiro, isso não ressoa sempre perceptível, pois a escrita de NCP te deixa levar no fluxo de ideias. Já no subtexto, é de se pensar na escolha por uma saída abstrata para uma situação de raiz complexa — é de se argumentar que “O amor em meio ao dinsensso” não se propõe a ser um tratado sobre crises cíclicas do capital, por outro lado.
Talvez possa não concordar com esse personagem, ou aquele (e aquele!), mas não é a toa que, vítima das armadilhas do autor, o leitor seja tão protagonista da história quanto cúmplice — e por essa você não esperava, Gustave Flaubert — a indignação volta para ti, como se o texto estivesse ciente e também debochasse, cínica (porém) compassivamente do leitor — um lembrete de que, assim como a capa, as coisas nem sempre são tão nítidas sob o Sol.
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Não há de se queixar do estilo e bom gosto do autor, que adota um modelo mais tradicional, mas não engessado e, somado a bons diálogos, a leitura torna-se mais agradável. Particularmente, nos empolgamos mais com o miolo e as relações de poder, gênero, e crises familiares, do que propriamente da resolução dos conflitos — o que por si só já amarra o público até o fim — mas isso é uma preferência quanto a abordagem da trama, que se enveredou mais solar.
A trama é recheada de referências a acontecimentos históricos recentes, neologismos do vocabulário político que tomam nosso cotidiano, e acenos a outras mídias, também para construir a identidade de suas personagens. Se isso pode chocar um leitor de clássicos, é preciso lembrar que histórias não são imortalizadas da noite para o dia.
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