Parte 8
Meu tio acordou logo que bateram à porta.
Ele não parecia ter dormido muito, mas a atmosfera na sala era outra completamente diferente. Pandora tricotava outro tecido naquele momento, um todo negro e de onde pouca luz parecia escapar. O senhor Girassol ia de um lado para o outro ajeitando as coisas até que bateram à porta uma segunda vez e ele correu para atender. Pandora parou de tricotar e olhou atentamente para a porta, o corpo velho e cheio de rugas estava imóvel, ela parecia a mais perfeita estátua já feita.
Pôs-se sentado outra vez com a manta ao redor do corpo meu tio Joaquim. Ele não sabia quanto tempo havia dormido nem que horas eram, pois, tirando a mudança de clima na sala, que era perceptível apesar de ele não entender como, tudo parecia igual naquele ambiente fechado e confortável. O Girassol se moveu graciosamente até a porta e abriu-a devagar, com uma reverência nova e delicada.
O visitante que entrava, meu tio notou, era diferente de todos os outros que haviam entrado antes. Esse, primeiro, era mais jovem do que os outros, o corpo em forma e as roupas elegantes (até de certa forma modernas). Depois, havia a questão do rosto, segundo meu tio era ‘o rosto mais bonito que eu já vi na minha vida, e por incrível que pareça era o rosto de um homem, meu rapaz’. Era um rosto, conforme me foi relatado, sólido, confiável e simétrico. A pele era negra, o queixo era quadrado e as bochechas eram firmes, ‘parecia a máscara de algum deus da guerra esquecido que decidiram usar como rosto’ foram as exatas palavras de meu tio.
“Urucum, você veio, afinal’, cumprimentou Pandora com uma voz tão doce que poderia ser uma mãe falando com um filho. “Achei que demoraria mais. Meu convidado, inclusive, dormiu menos do que eu imaginava”, disse ela referindo-se à tio Joaquim. O Girassol saiu correndo de volta à cozinha, possivelmente para trazer mais comidas e bebidas para o novo convidado.
Meu tio apenas encarou o homem enquanto esse entrava na sala e se acomodava com relativa segurança. Ele escolheu um banco mais reto e mais baixo do que os outros, depois enfiou a mão no sobretudo carmesim que usava (pois ele usava um sobretudo carmesim que mostrava, de resto, apenas as calças negras e os sapatos lustrosos e escuros) e retirou uma flauta branca como osso de dentro de algum bolso. O Girassol voltou, mas voltou apenas com uma jarra d’água e um copo para o convidado.
“Poderia trazer um pouco de café, por favor?”, pediu meu tio, sentindo-se levemente sonolento e sem vontade de parecer incapaz de sustentar uma conversa com o novo convidado.
O Girassol apenas assentiu e voltou andando para a cozinha. Pandora olhou para Urucum e voltou a tricotar devagar.
“Diga, como vão as coisas?”, ela quis saber, tranquila, curiosa, não mais como uma mãe, mas agora como uma avó preocupada com a vida de um neto desordeiro demais.
“Elas vão indo na medida do possível. Nada é fácil, mas pelo menos com alguma música é possível ganhar dinheiro e seguir vivendo”, contou Urucum. A voz dele era profunda e grave, cheia de tons melódicos próprios de quem cantava desde muito cedo. “Eu não posso nem reclamar, tem gente que está pior, o próprio Guapuruvu está por um triz, coitado. É certo que ele se vire, mas esse tipo de coisa não está certo, não deveríamos ficar assim, lutando pela sobrevivência como animais à beira da extinção…”
“São tempos sombrios, se quer saber, tempos sombrios…”, disse tio Joaquim entrando na conversa, “Esse governo militar vai ser terrível, as pessoas não aprenderam com a Segunda Guerra e olha que tem vinte anos desde que o conflito se encerrou. Estamos sob o comando dos fascistas aqui no Brasil agora”. E, ao me contar esse trecho da conversa enquanto conversámos em minha casa no Laranjeiras, a voz de meu tio esteve mais baixa e preocupada, falando rápido para que os ouvidos errados não escutassem o que ele dizia.
O Girassol voltou com o café em uma xícara fumegante que meu tio começou a bebericar devagar. Estava sem açúcar e forte, muito forte. O Girassol sentou-se na cadeira ao lado de Urucum, o rosto virado para o homem encarando-o com extrema curiosidade. Mesmo na face desumanizada era possível perceber na criatura uma larga dose de afeto e consideração pelo recém-chegado. Esse tinha em mãos a flauta, que limpava devagar e sem olhar para o instrumento enquanto conversava.
“Vai haver luta, mas não vai adiantar, se quer saber minha opinião”, disse Urucum enquanto desmontava a flauta e usava um lenço que meu tio não viu de onde saíra para limpar o instrumento de sopro por dentro.
“Se a nação se unir nós temos uma boa chance de conseguir”, afirmou meu tio, mas ao contar aquilo, dez anos depois de ter dito tais palavras, ele sorriu e murmurou algo enquanto narrava a história. “Estamos em maior número que os militares, dá pra conseguir, é só motivar o povo”.
Pandora estava em silêncio enquanto os dois homens conversavam, ela já costurava com desinteresse, as mãos magras e ossudas movendo-se lentamente e em círculos, sem muita vontade de continuar com aquilo. Ela olhava para os dois, mas apenas tio Joaquim parecia notá-la com o canto dos olhos.
“Desde quando o povo se motiva a fazer algo? As pessoas são gado na mão de quem tiver o melhor berrante ou o chicote mais afiado, não dá para contar com o populacho para nada”, retrucou o recém-chegado com certo ceticismo, mas sem subir a voz ou dar muita atenção à conversa.
“Isso só porque o povo foi alienado quanto à sua força. Nós podemos fazer mais e melhor se ensinarmos eles…”, meu tio continuava falando, convicto de suas ideias.
“E quanto tempo demoraria isso? Rapaz, fomos ludibriados de tal forma que não podemos fazer nada, nos cabe aceitar a punição que colocamos sobre nós mesmos até que ela se esgote…”, o músico deu de ombros e remontou a flauta. Depois, soprou-a algumas vezes testando algumas notas. Ele voltou o instrumento para o colo e olhou para tio Joaquim, “Fomos nós que colocamos nossa cabeça na guilhotina e puxamos a corda, agora as cabeças vão rolar e ninguém pode fazer nada”. Ele fez uma pausa e abriu um sorriso tranquilo. “Antes disso, porém, quem quer ouvir um pouco de música”.
E ele encaixou os lábios no instrumento para começar a tocar o que, segundo meu tio, foi a música mais irreal que já ouviu.
Por João Scaldini
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