Parte 9
A música exerce um fascínio nas mentes humanas que, segundo eu penso, não pode ser explicada de maneira lógica por quem ouve, mas apenas por quem estuda – e justamente por isso acabam não falando da mesma coisa quem ouve e quem vê os efeitos. Cada um tem seu modo de se envolver com a música, e são as experiências pelas quais as pessoas passam durante os anos iniciais de vida que determinam, mais ou menos, o gosto e estilo de cada um.
Eu, por exemplo, cresci em uma época que a censura e a repressão eram armas comuns do Estado, e por isso passei a admirar artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso, bem como muitos outros, que, através de figuras de linguagem, passavam belas mensagens em suas músicas. Tio Joaquim, no entanto, nasceu no início do século XX, e viu o nascimento da Bossa Nova no Rio de Janeiro, bem como a explosão de grandes artistas e movimentos artísticos na pintura, música e literatura nacional. Assim, meu tio tinha uma base e um conhecimento sobre música muito grande, e não só de artistas nacionais, mas também de artistas internacionais, fazendo dele uma pessoa que não se surpreendia facilmente com qualquer som ou barulho que alguém fizesse.
Ubuntu tocou, entretanto, e meu tio ficou em silêncio, boquiaberto com o que ouvia.
Não era apenas uma música, um som de flauta, um simples sopro de ar através dos lábios do recém-chegado para dentro do simples instrumento que parecia de osso, era como se a própria sala estivesse fazendo a música enquanto servia de palco para aquilo. O crepitar da lareira parecia ser parte da música; o baixo barulho de chuva que naquele momento era apenas um objeto guardado e esquecido no canto da mente de meu tio era uma parte da música; o silêncio dos objetos era parte do som da música; o sorriso de Pandora, a felicidade de Girassol, o espanto de meu tio, tudo isso era parte dessa composição de Ubuntu, que tocava ignorando a tudo e todos, soprando lentamente enquanto seus dedos se moviam sobre o instrumento criando notas e mais notas, conjuntos e melodias complicadíssimas.
Não era um som grave ou agudo, era maior do que os dois juntos, era como se cada parte tivesse seu contraponto produzido ao mesmo tempo, de maneira que não era possível dizer que havia uma nota aguda porque ela produzia um reflexo grave e não haviam notas graves pois essas produziam reflexos agudos. A música era uma imensidão e era também o mundo, era tudo aquilo que poderia produzir som e produzir música e encantar, mas era também, justamente por isso, tudo o que fosse silêncio e tranquilidade.
Sobre os efeitos da música, essa talvez seja a parte mais assustadora. Uma boa música tem a capacidade de te levar para longe e apelar para seus sentidos, criando na cabeça uma imagem nova com base em memórias antigas. A música de Ubuntu, todavia, fazia mais do que isso, ela sugeria temas novos para a cabeça de meu tio, coisas que ele nunca poderia ter visto ou ouvido ali ele era capaz de conceber com naturalidade, e quem passava aquilo para ele era a melodia da flauta, nada vinha de dentro, como todo o conhecimento, mas de fora, da música.
O coração dele estava acelerado e o peito subia e descia com velocidade à medida em que ele respirava com dificuldade. As palmas das mãos suavam e os dedos se contorciam sobre a cadeira enquanto ele, cativado pela música, punha-se a imaginar coisas. Na cabeça dele iam e voltavam as histórias e debates comandados por Guapuruvu e Figueira, respectivamente. Píramo e Tisbe iam e voltavam enquanto ele via Shakespeare sentado em um ambiente pouco iluminado, logo no início de sua carreira, escrevendo Romeu e Julieta com base em histórias já conhecidas naquela época. Deuses transformavam o primeiro casal em uma planta enquanto que os amantes de Verona caíam mortos dentro de uma igreja que na realidade era um palco bem montado e repleto de atores e público, que chorava desesperado pela morte dos amantes tão jovens e anteriormente esperançosos.
Foi ao chegar nessa parte que meu tio se silenciou, dessa vez por um tempo extremamente longo durante nossa conversa em minha sala de jantar na casa quieta em meio ao Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Eu me lembro de vê-lo sentado diante de mim alisando os bigodes loiros com calma, mas hoje, diante da embaçada lembrança que ainda me resta, creio que as mãos dele tremiam nesse instante. Os bigodes loiros, eu sempre achei-os engraçados, como se não fossem uma barba de verdade, e precisassem ficar maduros para então terem a mesma cor da barba negra de meu pai. Madalena a essa hora já havia partido, era tarde e meu tio desprendeu de bastante tempo para contar toda essa história, atendo-se a cada detalhe que ele achava importante. Uns hoje eu acrescento por experiência própria, mas sobre isso outro dia falaremos. Enquanto ele alisava o bigode e me olhava, eu esperava, como a criança introspectiva que era, em silêncio.
E foi um longo silêncio, tão longo que pude ouvir do lado de fora da casa a árvore na qual eu costumava me esconder balançar seus galhos e agitar as folhas, fazendo soar bem baixo o lento sussurrar das árvores. Esse som durou todo o silêncio de meu tio, até que ele voltou a me relatar a experiência com a música de Ubuntu.
Dentre as recordações sobre as histórias daquela noite, no chalé de Pandora, meu tio foi levado a lembrar de um caso dele, de amor. E de certa forma, conforme ele me contou, um tanto trágico.
Ele, alguns anos antes, havia se apaixonado por uma mulher que conhecera em um dos cafés do Rio de Janeiro, na época em que frequentava a roda de eminentes artistas e pensadores, ou apenas bon vivants, da Cidade Maravilhosa. Era uma mulher que meu tio definiu como o perfeito equilíbrio entre perfeitamente educada e mortalmente sarcástica, embora, com dez anos, eu não entendesse muito bem o que era sarcasmo. Ela bebia licor com café, usava cabelo curto e falava de filósofos modernos com tanta precisão que parecia conhecê-los pessoalmente. Se abria um sorriso, era tão honesto e verdadeiro quanto um nascer-do-sol no alto das montanhas, praticamente selvagem. Como mulher enfrentava os preconceitos clássicos de uma época e local tão conservador quanto o Brasil, mas safava-se bem de quaisquer olhares carregados de sobriedade e repreensão sendo a melhor no que fazia.
Tio Joaquim e essa mulher compartilharam por muito tempo do mesmo grupo de amigos, e começaram a sair juntos em algumas tardes, apenas os dois, para debaterem juntos os temas que os outros intelectuais já pareciam abandonar conforme o tempo passava e o caos político reinava no Brasil. Os dois passavam as horas ociosas que tinham atravessando os mais diversos temas e, quando o dia estava para se encerrar, esperavam pela noite sentados às margens do mar na praia de Copacabana. O respeito pelo conhecimento um do outro era o que mantinha, mais ou menos, a amizade no lugar.
Certo dia, contudo, tio Joaquim decidiu convidá-la para um jantar, e foi quando descobriu que a mulher em questão já era comprometida com outro rapaz, que estava fora do país momentaneamente à trabalho e estudo, em uma pesquisa. Aquilo, até certo ponto, matou as esperanças de meu tio, mas ele manteve a boa postura e seguiu tratando-a com gentileza. Os encontros, todavia, começaram a se tornar cada vez mais raros, até que por fim pararam quando o tal noivo voltou para o Brasil.
Eles só voltaram a se ver uma última vez, quando ele estava no casamento dela e se encontraram, no final da festa, sozinhos na cozinha. Foi quando conversaram, ou ao menos foi isso o que meu tio me disse quando eu tinha dez anos. Hoje eu sei que fizeram mais do que conversar, mas o importante é que aquela despedida deles foi triste e calorosa, entre lágrimas e beijos, afinal, estavam destinados a nunca mais poderem se ver e isso era, para ele, pior do que o destino de Píramo, Tisbe, Romeu, Julieta e qualquer outro casal apaixonado cujo fim seja a morte.
Ao final da música, tio Joaquim estava em lágrimas enquanto se lembrava daquilo. Ubuntu limpou a flauta, fez uma mesura, levantou-se em silêncio e foi embora, deixando meu tio sozinho na sala com Pandora e Girassol.
Ao final da história, meu tio tinha um olhar triste direcionado a mim, mas esforçou-se para sorrir. Ele pegou os pratos, pires e xícaras e deixou tudo na pia da cozinha antes de voltar para continuar. Aparentemente, ele usou essa oportunidade para chorar sem que eu pudesse ver.
Após a saída de Ubuntu, enquanto meu tio chorava na sala de Pandora, ela olhou para ele e perguntou o motivo, ele apenas meneou a cabeça e, entre suspiros cansados, contou tudo o que havia acontecido.
Ela sorriu e deixou finalmente o crochê de lado, com um ar satisfeito.
“Agora que me contou sua história, está quase na hora de ir embora, mas, antes, eu tenho algumas palavras para você”, disse a velha mulher dona do chalé. O modo como ela afirmou aquilo, todavia, fez com que um pequeno calafrio subisse pelas costas de tio Joaquim. As palavras dela ficaram na mente dele para sempre, bem como ficaram na minha até hoje.
Por João Scaldini
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