O mestre do cinema de horror bizarro está de volta
David Cronenberg é amplamente reconhecido por empregar os corpos como instrumentos em seus filmes de horror. Em muitos deles, o “monstro” emerge da deformação ou transformação humana. Em seu mais recente longa-metragem, “O Senhor dos Mortos”, não há um “monstro”, mas o corpo permanece como tema central, entrelaçado com as já conhecidas e apreciadas bizarrices autorais do cineasta canadense.
A trama gira em torno de Karsh (Vincent Cassel), que desenvolve um, por assim dizer, cemitério interativo. Nele, a família pode acompanhar em tempo real a decomposição de seu ente querido por meio de um aplicativo de celular. Isso é viabilizado porque o empresário elabora uma mortalha high-tech que possui uma câmera de alta resolução integrada à sua estrutura. Essa invenção, inclusive, é utilizada no corpo de sua esposa Becca, interpretada por Diane Kruger, que faleceu em decorrência de um câncer.
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É evidente que essa premissa exige que o espectador exerça a necessária suspensão da descrença, uma vez que ninguém em sã consciência aceitaria observar a decomposição de um corpo na tela de seu celular, especialmente quando se trata de um familiar. Essa possibilidade é exclusiva para um personagem de Cronenberg, como Karsh, que se revela alguém com tendências necrofílicas.
Entretanto, o roteiro não precisa seguir uma lógica convencional para atender às intenções de seu realizador. A reflexão proposta é sobre como a tecnologia tem invadido nossos corpos, chegando ao ponto em que, no filme — e talvez no mundo real em um futuro próximo —, ela não nos abandone nem mesmo após a morte. O interessante nesse contexto é que o protagonista é considerado um fanático por corpos, um especialista, mas mesmo ele não compreende o que realmente está ocorrendo quando seu cemitério é vandalizado e alguns cadáveres específicos desenvolvem pequenas e misteriosas protuberâncias. Nesse momento, a paranoia e a desinformação dominam, envolvendo-o aparentemente em um jogo de espionagem dos governos da China e da Rússia. Portanto, pode-se identificar o próprio Cronenberg no personagem: o cineasta aclamado como mestre do horror carnal, que supostamente compreende as particularidades da nossa fisiologia para usá-las em seus filmes, mas que neste novo mundo virtual de simulação computacional, avatares e inteligência artificial, encontra dificuldades em desenvolver seu cinema, pois a carne está dando lugar aos pixels.
Além da perda de entendimento sobre sua mais importante matéria-prima, Karsh começa a ter pesadelos com Becca, que se intensificam gradativamente ao envolver amputações de membros. Esses momentos reforçam o luto eterno do personagem, o mesmo que o próprio Cronenberg pode ainda estar enfrentando pelo falecimento de sua esposa, ocorrido em 2017. “O Senhor dos Mortos”, portanto, seria sua maneira de analisar e confrontar esse luto.
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Este filme foi visto durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
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