Escrita e protagonizada por mulheres, “Orange is the New Black” é uma das mais iconoclastas obras de arte produzidas pela cultura de massa, inclusive pelo tom singular em contar suas histórias: transita entre o drama e a comédia com incrível habilidade. Como um espelho, o cotidiano de presidiárias nos revela muito sobre a sociedade que está fora das grades. Nos E.U.A., entre 1980 e 2016, a população carcerária feminina aumentou 800%. No Brasil, entre 2000 e 2014, o número de detentas subiu 567%. Quase 70% está ali por tráfico de drogas. Por essa razão, Piper Chapman foi encarcerada. Ela faz parte de um grupo que, em geral, não vai para a cadeia: é branca, da classe média alta.
“Piper Chapman: Estou aqui há duas semanas. Passei fome, fui apalpada, provocada, perseguida, ameaçada e chamada de Taylor Swift.”
Seu confronto com a realidade e a diversidade cultural não é o único ponto de vista da série e, assim, a riqueza polifônica da narrativa alcança o espectador ampliando campos de visão. É através dessa pluralidade que percebemos como fomos educados para pasteurizar as diferenças, empurrando a alteridade para a margem mais afastada possível.
“Red: Todos os problemas são entediantes enquanto não são seus problemas.”
Quando Foucault descreveu a sociedade disciplinar, mostrou como as instituições modernas se fortaleceram ao regular e excluir o que não faz parte do projeto de quem tem poder econômico. Deleuze aponta de que maneira essa lógica funciona na contemporaneidade. O controle exercido em nossos corpos é mais bem efetivamente realizado através do desejo construído por campanhas publicitárias. “Mad Man” é exatamente sobre esse processo. É apavorante como, não importa a origem, todos nós queremos o carro do ano ou a nova invenção cosmética. Nós escolhemos perder a liberdade para, entre dívidas, desfrutar bens de consumo.
“Piper Chapman: Nem toda pessoa latina quer a mesma coisa.
Lorna Morello: Claro que querem. Todos querem vir para os Estados Unidos.”
“Orange is the New Black” denuncia, sem medo, a falta de humanismo em processos de privatização de penitenciárias. Assusta entender como, em uma estrutura tão corrupta, o mais doce dos homens pode se tornar assassino.
Com a mesma coragem, a série ilustra como o feminismo só se fortalece com a sororidade entre mulheres (não importa se são cis, trans, hétero, homo, bissexuais, negras, brancas, jovens, velhas, religiosas ou não…). Em um dos momentos mais delicados e arrebatadores da série, as carismáticas Pensattucky e Big Boo nos dão a pensar sobre a natureza do estupro: não é apenas uma violência sexual, é um crime de ódio produzido pela misoginia.
A relevância de “Orange is the new black” é imensurável. Com sua riqueza artística, sem qualquer traço de propaganda, a série encena como ser hipócrita é bem diferente de ser politicamente correto. Revisar, inclusive linguisticamente, valores que oprimem mulheres, negros, índios, gays, pobres… é o caminho para a liberdade.
Por Carmen Filgueiras
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Genial! 🙂
Que bom que curtiu! Estou aqui aguardando a próxima temporada.
“Revisar, inclusive linguisticamente”, lá no finzinho do artigo é uma sacada que precisa subir para as preocupações prioritária da critica. Muito boas as digressões desde Foucault
Obrigada! Concordo. A crítica precisa de crítica.
Quando comecei a ver essa série, gostava muito do ritmo e da discussão que ela apresentava. Tenho achado que a Netflix negligenciou um pouco, uma vez que tem na produção a própria Piper, e explorou um lado sombrio em algo que originalmente era apresentado como comédia. Tem um livro chamado “Presas Que Menstruam”, da Nana Queiroz, que expõe a realidade do sistema carcerário brasileiro, vale muito a pena a leitura pra perceber que, infelizmente, essa triste realidade é igual para todas as presas. Espero que agora na quinta temporada a série tome outros rumos e explore mais as outras presas, além de uma redenção para a própria Piper.
Obrigada pela dica, Júlia! Tentarei lei “Presas que Menstruam”.