“Antes de morrer se vive, Lóri.” (p.61)
O que define um clássico? O autor encerrado em si mesmo, ou a sua obra que perpetua anos a fio? (Ou os dois?). “Uma Aprendizagem ou o livro dos prazeres” de Clarice Lispector, talvez nos responda a essas perguntas, mostrando como tanto a obra, quanto autor, podem ser atemporais. E um livro, publicado inicialmente em 1969, nunca foi tão atual nesses tempos onde reinam a indiferença, o egoísmo e a falta de amor e empatia pelo próximo. Porque, sim, assim como Lóri, personagem central dessa obra, nós, meros mortais, podemos amar apesar de.
“Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu.” (Clarice Lispector)
Lóri (apelido para Loreley) é uma professora primária, que saiu da casa dos pais em Campos e passa a viver no Rio de Janeiro. Vem de uma família de classe alta. Conhece Ulisses, que é professor de Filosofia em uma universidade, e que certa noite a vê esperando um táxi. Tudo termina em uma carona.
A relação entre eles começa de maneira platônica, na qual ele insiste que o contato físico somente aconteça quando ela estiver pronta para uma relação verdadeira. É iniciado então um grande processo de aprendizagem para a protagonista, em que mergulha até o lugar mais profundo do seu eu para encontrar as respostas para suas perguntas pessoais e entender a dimensão dessas aulas que Ulisses lhe propõe.
Lóri entra em uma fase bastante intimista. Seus questionamentos pessoais que já existiam e os que surgem durante o processo são geralmente solitários (eventualmente compartilhados com Ulisses). Ulisses funciona como uma espécie de “mestre”, pois, segundo ele, já está muito mais avançado nesta aprendizagem e apenas esperando que Lóri a conclua. Durante a narrativa percebe-se que ele, de certa forma, precisava aprender também com ela da mesma maneira que ela aprendia com ele.
Alternam seus encontros com intervalos sem se ver, pensando no que foi dito e resolvendo outras questões pessoais. Lóri não conseguia mais voltar atrás. O sabor do conhecimento sobre ela mesma e sobre o mundo a incentivava a continuar, além do sentimento que nutria por Ulisses.
Uma passagem bastante decisiva na aprendizagem de Lóri é onde ela resolve entrar no mar com o dia ainda amanhecendo. Lispector descreve lindamente o sentimento da personagem que precisava de libertação e a encontra no meio das ondas. Essa cena é um divisor de águas da obra: a partir daqui Lóri sente-se muito mais em paz consigo mesma, passando a sentir-se inteira.
O casal passa a falar mais abertamente dos seus sentimentos; Ulisses diz que a ama e Lóri revela-se uma mulher perfeita para ele, uma vez que compartilha a sua falta de saber como viver, aceita esse aprendizado constante. Talvez este seja um dos pontos mais fortes que Lispector evidencia na sua obra, o desassossego do ser humano frente a sua falta de saber das coisas do mundo. Todos nós estamos sempre aprendendo, e devemos aceitar este processo pois só assim conseguiremos conhecer mais sobre nós mesmos e entender porque sentimo-nos de tal forma sobre tal assunto.
O medo de aprender existe em Lóri. Ela tem medo de que a aprendizagem leve a uma conclusão que a deixe confusa para sempre, mas isso não impede que ela vá adiante pois Ulisses a incentiva o tempo todo.
Em um certo ponto, ele diz que sua busca do mundo chegou em um estágio em que a deixou preparada para a relação dos dois. Diz que a espera em sua casa com rosas por todo o quarto, e que as trocará todo dia até que Lóri deseje aparecer, sem pressa. Não telefonaria mais para ela, só esperaria o dia em que ela aparecesse para dar-lhe o que era e receber o que ela era. Ambos haviam guardado-se um para o outro por muito tempo.
Finalmente, no meio da noite, ela resolve ir até a casa de Ulisses, sem amarras pessoais, sem pintura no rosto, de camisola. Livre das suas próprias angústias. Ele a recebe, ajoelhando-se aos seus pés e também totalmente imerso naquele momento que tanto esperaram. “Nunca um ser humano tinha estado tão perto de outro ser humano” (p.144). Consumam a sua relação com uma noite de amor, e a partir daí começará uma nova história de um relacionamento verdadeiro.
A obra possui uma estrutura totalmente atípica, iniciando com uma vírgula e terminando com o sinal de dois pontos. Pode-se entender este recurso como a representação de que é apenas um capítulo da vida dos personagens, que nada tem início e fim. Nas primeiras páginas há um estranhamento do leitor com a pontuação repleta de vírgulas e com frases começadas em um parágrafo e terminadas no outro. Esta escolha da autora mostra exatamente o fluxo de pensamentos da personagem. Em geral, a pontuação utilizada mostra que tudo na vida é movido por um ciclo que nunca pára de girar, fazendo com que tenhamos experiências novas e a aprendizagem nunca termine.
A narrativa é feita sob os olhos de Lóri, utilizando o fluxo de consciência apresentado nas obras da autora, porém a narração não é feita em 1ª pessoa e sim em 3ª pessoa, apresentando assim um narrador observador. Neste caso, ele não narra apenas ações da personagem e sim a ações e suas conseqüências na mente de Lóri, seus devaneios mais profundos.
A viagem interior feita pelos personagem traz à tona reflexões que as pessoas, ao depararem-se com elas durante a leitura, parem para questionar a si mesmas e com isso abrir a sua percepção de mundo. O conflito da protagonista de não saber quem na realidade é e seu lugar ocupado no mundo é também o conflito de todo ser humano, que durante a História sempre esteve em busca de sua identidade, de diversas maneiras, através de três perguntas do estudo antropológico: “Quem somos?”, “De onde viemos?” e “Para onde vamos?”.
“E umas das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente.” (p.26)
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